O caso de um grupo de homens que torturou e matou um rapaz movimentou os moradores de Liège, cidade da Bélgica. Até então o crime era inédito na região, junto com fortes contornos de um crime homofóbico. Essa história é o que mobiliza o teatro de Milo Rau, diretor suíço de A Repetição. História(s) do Teatro (I), espetáculo que agitou o público no Festival de Avignon no ano passado e que abre a programação da 6ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), entre os dias 14 e 24 de março.
Neste ano, a programação contempla oito espetáculos internacionais (Bélgica, Chile, Congo, Itália, Reino Unido e Suíça) e três estreias nacionais.
O destaque da edição está nos trabalhos de Rau, que ainda estreia mais duas montagens, Cinco Peças Fáceis e Compaixão. A História da Metralhadora, conta o curador Antonio Araújo. “Em A Repetição, ele recupera o caso de um crime homofóbico enquanto tenta reproduzir o acontecimento com os atores.” A peça começa como uma espécie de tesde de elenco, para recriar o caso. Aos poucos, são discutidas formas de representar cada parte da história, incluindo uma cena da tortura, que na montagem dura 20 minutos.
Outro acontecimento violento também dá o tom de Cinco Peças Fáceis. Dessa vez, Rau lembra o caso real de pedofilia por parte de um serial killer de crianças. “É uma peça anterior a Repetição, e que persegue um caminho para recriar esse ambiente de violência”, explica Araújo.
A exceção fica por Compaixão, que buscar dar uma perspectiva crítica sobre os efeitos da colonização europeia na África, mais precisamente no genocídio de Ruanda. “A peça traz duas mulheres, uma delas é europeia e realiza trabalhos humanitários na região, a outra é africana, que conhece de perto os horrores da guerra”, conta o curador.
Uma chance de contraponto se dá em O Alicerce das Vertigem, do ator e diretor congolês Dieudonné Niangouna. Na montagem, ele resgata as sequelas deixadas pela colonização europeia. “Agora temos um artistas nascido no Congo que dá seu relato sobre os conflitos e a exploração mais cruel sofrida pela África, impetrada por Leopoldo II”. O rei da Bélgica foi responsável, entre 1865 e 1908, pela exploração dos recursos naturais do Congo por meio do trabalho forçado e pela mutilação de africanos como castigo por metas não alcançadas.
Outra montagem que adentra o campo geopolítico é Democracia, inspirado em textos de Alejandro Zambra, com atores chilenos, e direção de Felipe Hirsch. O espetáculo é coprodução do Festival Santiago a Mil com a MIT e investiga aspectos da educação, traços da ditadura, desigualdade e a transição democrática chilenas. “Apesar de tratar questões particulares do país, algumas coisas chegam até nós, brasileiros, como a história da ditadura”, aponta o curador.
Questões sociais e um divertido game show definem Mágica de Verdade, espetáculo do grupo inglês Forced Entertainment, importante coletivo fundado em 1984. A montagem reinventa o teatro em uma combinação de atuação e performance. Em 2016, o grupo foi contemplado pelo Prêmio Ibsen, considerado o Oscar do teatro. “É um grupo que influenciou meu trabalho”, afirma o curador que também é diretor do Teatro da Vertigem. “Tentamos trazê-los desde as primeiras edições do mostra e agora foi possível.”
Trabalho marcado por poesia e delicadeza é MDLSX, espetáculo da italiana Silvia Calderoni, nascida hermafrodita. A montagem lança um olhar para a própria história da atriz, em um passado narrado com o auxílio de fotografias e filmes antigos. “Por essa condição ela conta que teve de sofrer uma cirurgia ainda criança”, conta Araujo. “É um espetáculo poético e muito sofisticado.”
Outro solo é Partir com Beleza, do francês Mohamed El Khatib, que resgata uma história de dor, após a morte de sua mãe. Reunindo entrevistas, textos e documentos reais e ficcionais, Khatib faz uma passeio pela memória mais antiga e mais íntima. A montagem faz parte de uma parceria de textos teatrais franceses que serão traduzidos para o português e ganharão leitura no Brasil. “Da mesma forma, textos nacionais serão traduzidos para o francês e também ganharão leituras na França”, explica, Araújo.
Na programação de estreias nacionais está Manifesto Transpofágico, com a atriz Renata Carvalho, conhecida por O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, espetáculo que chegou a ter apresentação cancelada pela Justiça e recentemente retirada da programação do festival Janeiro de Grandes Espetáculos, em Pernambuco. Em seu Manifesto, a atriz revisita sua história como artista trans.
Ao lado, está o performer Wagner Schwartz com A Boba, inspirado na obra de Anita Malfatti. Assim como Renata, Schwartz enfrentou a dura repercussão nacional de La Bête, apresentado na mostra Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM). “Ele discute o sentido de liberdade, diante das ameaças e críticas que recebeu. É uma forma de o artista dar uma resposta ao ocorrido”, diz o curador.
Por último, a atriz e pesquisadora Gabriela Carneiro da Cunha emerge de uma vivência no Xingu com Altamira 2042, no qual reuniu testemunhos de moradores sobre a barragem de Belo Monte. “Com o uso de sons e falas, ela constrói um paisagem sobre os conflitos que atingem populações tão vulneráveis no Brasil, como os indígenas”, aponta Araújo.
Além da mostra principal, a edição continua com a Plataforma Brasil, uma reunião de espetáculos com sessões voltadas para programadores de festivais que estarão acompanhando a mostra. “O nosso teatro e dança ainda são pouco conhecidos fora do Brasil, mesmo que tenhamos uma produção tão rica”, diz.
Para o curador, umas das causas é a ausência de políticas públicas específicas. “O Chile, por exemplo, costuma trazer mais de 200 programadores e curadores que vão ao país assistir a produção local e, posteriormente, selecionar que vão circular em festivais no mundo todo.”
6ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Vários lugares. 14 a 24 de março.
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Por Leandro Nunes no Estadão.