Em 1971 Jan Gehl lançava seu livro revolucionário Life Between Buildings (‘Viver entre Prédios’, tradução livre) na longínqua Dinamarca. O jovem arquiteto de 36 anos havia trabalhado desde 1966 como bolsista de pesquisa na Academia Academia Real de Belas Artes da Dinamarca, com o trabalho “estudos da forma e função dos espaços públicos”.
A principal bandeira de Gehl é colocar as pessoas no centro do processo de projeto e gestão da cidade. Pessoas em primeiro lugar, não carros, não interesses individuais, mas as pessoas, suas vidas diárias, sua maneira de usar e se locomover na cidade, suas relações afetivas e humanas.
Os ideais dominantes de planejamento urbano do movimento moderno, negligenciaram a dimensão humana e contribuíram para o espraiamento urbano e segregação socioespacial, desumanizando as cidades em termos de escala ou sentido de pertencimento. Life Between Buildings se enquadra em um momento da história em que as convicções modernistas, funcionalistas e tecnicistas, sobre urbanismo e arquitetura, já estavam sendo questionadas e alguns outros pensadores abriam o caminho para uma nova maneira de ver a cidade.
Na década de 1960, análises e estudos realizados por arquitetos e teóricos começaram a trazer à tona questões como geografia, paisagem urbana e psicologia ambiental. Os primeiros autores da pós-modernidade, Jane Jacobs com Morte e Vida das Grandes Cidades, Kevin Lynch e A Imagem da Cidade, Gordon Cullen e A Paisagem Urbana e Aldo Rossi, com A arquitetura da Cidade, inspiraram a renovação do pensamento urbano.
O livro de Gehl é precursor de um conjunto de acontecimentos que ocorreram na década de 1970, como a crise do petróleo e, por consequência, do modelo urbano baseado no carro, e a demolição do conjunto modernista Pruit Igoe, dinamitado em 1972, marcando oficialmente o fim do modernismo como movimento intelectual e estilístico.
A pós-modernidade fervilhava na década de 1970. A complexidade da vida e das relações humanas e sociais permeia o pensamento dos arquitetos e urbanistas de então. A sociedade da imagem e do consumo já se apresenta como forte influência na constituição dos espaços urbanos e arquitetura, dando os tons da pós-modernidade. Contemporâneo ao trabalho de Gehl, porém com uma interpretação diametralmente oposta, está o clássico Aprendendo com Las Vegas (1971), onde Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, reforçam a presença do automóvel como meio de fruição da paisagem, reconhecendo que é o meio pelo qual se percebe e vive parte dessa cidade. Conforme esta visão, os letreiros são elementos fundamentais no meio urbano, exercendo um papel importante na arquitetura. Las Vegas é uma cidade que se percebe através da velocidade dos carros.
Life Between Buildings vem para contradizer esse modelo de cidade veloz e consumista. Não é apenas um livro de urbanismo, mas um manifesto mais amplo, defendendo a importância das relações sociais e humanas, da vizinhança, do uso da cidade pelas pessoas e da qualidade de vida que uma cidade mais humana pode oferecer. Jane Jacobs classifica o livro como “Imaginativo, belo e esclarecedor”.
Uma das principais influenciadoras do pensamento de Gehl é sua esposa, a psicóloga Ingrid Mundt. O casal sempre buscou desenvolver um pensamento integrador entre sociologia, psicologia e arquitetura, levando Gehl a sua principal proposição: o planejamento urbano deve ajudar a criar cidades para as pessoas e a escala humana deve ser a prioridade. A arquitetura deve ir além da forma, precisa ajudar a criar o melhor habitat para o Homo sapiens.
“Eu e minha esposa percebemos que a grande lacuna entre os arquitetos e os sociólogos era que ninguém estava nas ruas, observando o que o formato das cidades estava causando nas pessoas”, declarou ele durante sua palestra em conferência do evento Fronteiras do Pensamento, em 2016 em Porto Alegre.
Uma viagem do casal à Itália em 1965 foi fundamental para que o arquiteto percebesse a importância da vida pública. Talvez pela própria história da Itália, herdeira do Império Romano e da cultura do Fórum, as cidades por lá são muito vivazes.A investigação de Gehl sobre a interação das pessoas com a cidade foi desenvolvida a partir de métodos e dados em especial contagem de pedestres, análise de seus movimentos e permanência no espaço urbano.
Gehl explica que a vida pública no espaço entre os edifícios é influenciada por uma série de condições, e o ambiente construído é uma delas. Segundo ele, as atividades que realizamos em espaços públicos podem ser agrupadas em três categorias: as necessárias, as opcionais e as sociais.
Para as atividades necessárias, como ir ao trabalho, escola, mercado, farmácia, não temos muita escolha, somos obrigados a cumpri-las, portanto teremos que usar a cidade para isso. Já as atividades opcionais, onde a pessoa participa se quiser, o meio físico influencia muito na decisão de usar a cidade. Atividades físicas como corrida, caminhada, deslocamentos a pé, bicicleta, só vão acontecer se as condições exteriores forem ideias para tal. Já as atividades sociais dependem da interação com outras pessoas, como a brincadeira, o encontro, a conversa, ou seja, a ativação do espaço público.
Em um bom ambiente urbano muitas atividades podem acontecer. A presença de outras pessoas, atividades, eventos, inspirações e estímulos está entre as qualidades mais importantes dos espaços públicos. Sendo assim, as atividades funcionais, recreativas e sociais se entrelaçam e se combinam tornando a análise a partir de uma única categoria insuficiente para observarmos as atividades ao ar livre.
Cultivar uma cidade com vida pública resulta na ampliação dos encontros frequentes ligados a atividades diárias, e assim a ampliação dos contatos e relacionamento com vizinhos, facilitando o desenvolvimento de amizades e redes de contatos. Os encontros casuais têm muito valor sob essa perspectiva.
Mesmo a forma mais modesta de contato, simplesmente ver e ouvir ou estar próximo aos outros, além de ser gratificante, amplia nossa percepção de mundo a partir de outras realidades. A pandemia demonstrou o quanto Gehl estava certo. O isolamento social e o esvaziamento das cidades trouxeram impactos que ainda não conseguimos medir, especialmente no aspecto psicológico e das relações humanas.
Além de Life Between Buildings, Gehl também é autor no clássico Cidade Para Pessoas, traduzido em 24 idiomas, e do atual Como Analisar a Vida Pública, entre outros. São livros com forte base metodológica, que instrumentalizam a aplicação prática das ideias do arquiteto por parte de outros profissionais.
Gehl parece nos lembrar do óbvio: Pessoas atraem pessoas. Mas, ainda 50 anos depois deste tratado sensacional, na maioria das vezes, essa máxima é esquecida em prol de algum tipo de solução que não é a mais adequada para fomentar o mais importante em uma cidade: oportunizar o encontro e a vida em comunidade.
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