“Defender ciclovia é coisa de homem branco de classe média, pobre não anda de bicicleta”. “São Paulo nunca vai ser como Amsterdam, uma cidade para ciclistas”, “Ninguém usa as ciclovias”. Essas são algumas das frases que Rene José Rodrigues Fernandes está cansado de ouvir. E que tenta, junto com a Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, conhecida como Ciclocidade, refutar. Diretor da entidade e pesquisador de políticas públicas da Fundação Getúlio Vargas São Paulo, Fernandes assistiu este ano o número de ciclistas mortos subir 55%, e o prefeito João Doria congelar a ampliação da malha cicloviária da capital. Para ele, o grande culpado por estas tragédias não é apenas o motorista imprudente, mas também “quem possibilita e estimula o cenário de falta de segurança”, afirma, referindo-se ao que considera como retrocessos da política de mobilidade do tucano. “É preciso acalmar o trânsito, e não acelerar, como diz o slogan do prefeito”, diz em entrevista concedida ao EL PAÍS.
Pergunta. Como avalia o primeiro ano da gestão de João Doria no tocante à mobilidade urbana?
Resposta. É uma gestão bem fraca. Especificamente em relação à mobilidade ativa, muita fala e nenhuma ação. Na questão do aumento das mortes de ciclistas e do aumento do número de mortes nas marginais Tietê e Pinheiros, o prefeito João Dória e o presidente da CET, João Octaviano, têm um discurso que tira a responsabilidade da prefeitura e transfere para “o motorista imprudente”. É a meritocracia às avessas.
P. Doria e vereadores de sua base aliada afirmam que muitas ciclovias são subutilizadas, e por isso devem ser removidas ou repensadas. Como você enxerga isso?
R. Estamos em uma época na qual o aquecimento global é uma unanimidade científica. Centenas de países pelo mundo lutam para reduzir suas emissões antes que cidades litorâneas fiquem embaixo d’água. A grande questão para os grandes centros urbanos é: como é que vamos tirar cada vez mais carros das ruas e fazer com que estas ciclovias, estes ônibus e os metrôs sejam cada vez mais usados e tenham, ao mesmo tempo, uma qualidade satisfatória.
A gestão Doria fez uma coisa bem infeliz ao criar e sancionar uma lei que burocratiza a implantação de ciclofaixas. Por serem pinturas nas ruas, as ciclofaixas são baratas de serem implantadas e, se um traçado deve ser modificado, são as estruturas mais simples de serem mudadas. O prefeito e a base aliada conseguiram encarecer a principal e a mais barata ferramenta que tinha para conectar a rede cicloviária já existente, o que a tornaria cada vez mais útil. Isto joga contra o próprio argumento de eficiência de gestão, com qual Dória foi eleito.
O poder público deveria se perguntar: faço as conexões essenciais na malha cicloviária para que ela melhore a sua eficácia ou me preocupo longamente em discutir trechos já implantados, dos quais a vasta maioria funciona bem? Este é o cerne da argumentação.
P. O fato das ciclovias e ciclofaixas terem sido uma vitrine da gestão anterior pode acabar afastando Doria destas iniciativas?
R. Embora não pareça a muitas pessoas, políticas cicloviárias ultrapassam gestões. As ciclofaixas de lazer, por exemplo, começaram no governo de Gilberto Kassab, que também reduziu velocidades nas ruas. O Doria pode pegar o que já está feito, que é muito bom, e melhorar. O planejamento já está pronto, há rubrica orçamentária, as pessoas de uma forma geral já estão se acostumando às bicicletas nas ruas e há canais estabelecidos de diálogo com a população, canais para diálogos técnicos, inclusive. Transformar a mobilidade ativa [que engloba ciclistas e pedestres] e o transporte público em bandeiras suas, e não o aumento de mortes nas marginais, é algo que seria fácil para ele fazer e ajudaria a reduzir seu nível de rejeição.
P. Qual foi o maior avanço em políticas de mobilidade em bicicleta nas últimas gestões?
R. Para a bicicleta, o maior avanço é a criação do que hoje chamamos de um sistema cicloviário, que abarca infraestrutura de ciclovias e ciclofaixas, bicicletários, os sistemas de bicicletas compartilhadas e as ciclofaixas de lazer. Facilitar a inserção da bicicleta como meio de transporte na cidade, contudo, não para por aí. Medidas de acalmamento de tráfego, como a redução das velocidades máximas nas vias urbanas e a fiscalização de infrações dos motoristas também são fundamentais. Hoje São Paulo possui um plano cicloviário que é, ao contrário do que muitos pensam, um planejamento extensivo, com metas a serem cumpridas até 2030. É no momento em que a bicicleta passa a ser amparada pelos marcos legais, como leis, decretos e normas, que ela vira um assunto sério.
P. No trânsito de São Paulo, qual o maior inimigo do ciclista?
R. Todas as nossas pesquisas apontam que o maior problema das pessoas ao usar bicicletas nas ruas é a sensação de falta de segurança relacionada a veículos motorizados. Embora ciclistas sintam literalmente no corpo a falta de segurança nas ruas e tendam a culpar aquele motorista que acabou de lhe dar uma fechada, seu principal inimigo é quem possibilita e estimula o cenário de falta de segurança. É aí que você entende o quão ruim é um slogan como o “Acelera São Paulo”, ainda mais quando acompanhado de bravatas sobre redução no número de multas, como vimos no primeiro semestre de 2017. Uma mensagem assim, vinda diretamente do prefeito da cidade, cria uma sensação de permissividade no trânsito que deveria ser desestimulada a todo custo. E isto cobra seu preço nas vítimas mais frágeis, em quem está fora da proteção de um veículo fechado. Não por acaso, este ano, vimos o aumento no número de mortes de pedestres e ciclistas.
P. O que vem primeiro, o ciclista ou a ciclofaixa/ciclovia?
R. O exemplo de São Paulo é um clássico que se repetiu em muitas cidades. Primeiro há o ciclista invisível. Ninguém vê estas pessoas no canto da rua, com os sentidos à flor da pele para não serem fechadas por um carro, ônibus ou caminhão. Quando estes ciclistas invisíveis passam a se juntar há mobilizações para que passem a ser vistos. São bicicletadas, ou “massas críticas”, pelas ruas, parando o trânsito, chamando a atenção do poder público. Então surgem as primeiras iniciativas voltadas à bicicleta, que em um primeiro momento é vista apenas como uma forma de lazer. As ciclofaixas de finais de semana são o exemplo maior disto. Até aí, a participação da bicicleta diante de outros meios de transporte possui um limite. São proporcionalmente poucas as pessoas que arriscam a própria vida, sendo pioneiras em um cenário como este. Quando a coisa se torna mais complexa, com bicicletas públicas compartilhadas, malha cicloviária, acalmamento de tráfego, começa a existir um incentivo real para mais gente entrar nessa onda.
P. Esse incentivo já existe, não?
R. É o momento em que estamos agora. Se há poucos anos tínhamos um cenário habitável apenas por um grupo composto em sua vasta maioria de homens dispostos a enfrentar o trânsito, começamos agora a perceber os primeiros vislumbres de que essa cultura de incentivar a bicicleta pode também abrir espaço para mulheres, adolescentes e até mesmo crianças, idosos e cadeirantes ocuparem as ruas. Ainda estamos no estágio inicial e há muito a ser feito para transformarmos uma realidade que ainda é adulta e masculina. Estamos no momento em que é necessária mais segurança no trânsito de um modo geral. Isto inclui ampliar a malha cicloviária para que haja mais ciclistas nas ruas.
P. Para muita gente a defesa da ampliação da malha cicloviária é uma bandeira de pessoas brancas de classe média. Como enxerga essa crítica?
R. Este estereótipo pode existir em parte da zona oeste da capital paulista, mas está longe de ser verdade para a cidade toda. A Ciclocidade fez uma extensa pesquisa de perfil de quem usa a bicicleta em São Paulo em 2015. Fizemos uma atualização desses dados agora, em 2017. Os dados ainda estão sendo analisados, mas já dá para ver algumas coisas interessantes. Falemos da questão da renda primeiro: se em 2015 38% dos ciclistas entrevistados ganhavam de zero a dois salários mínimos, este número sobe para 46% na atualização de 2017. O levantamento deste ano trouxe também a possibilidade de as pessoas entrevistadas se definirem quanto à cor, algo que não havia na pesquisa anterior. Embora 43% das e dos ciclistas se definam como brancos, outros 51% se definem como pardos ou negros, o que demonstra que estamos bem longe desse perfil que a pergunta aponta. Esta composição é muito semelhante à composição étnica e racial da sociedade brasileira como um todo, de acordo com o Censo do IBGE de 2010.
P. O cicloativismo então não é uma bandeira de classe média?
R. Sem esquecer que esta bandeira envolve ciclistas tão diversos quanto os retratados na pesquisa, o cicloativismo possui historicamente sim envolvimento grande das classes média e média-alta. O que temos visto é que, para classes mais baixas outras pautas são prioritárias, como moradia, saúde, acesso à cidade. A pauta da mobilidade – não apenas a da bicicleta – tende a vir depois destas. Deve ser mencionado, contudo, a importância de coletivos regionais como o Ciclo ZN, o Bike Zona Sul ou Bike Zona Leste, por exemplo, que articulam e pautam cada vez mais as questões da bicicleta em áreas não centrais. Começa a existir uma descentralização clara de quem segura esta bandeira.
P. Como integrar o ciclista morador das periferias paulistas nesta luta por melhoria na malha cicloviária?
R. A Ciclocidade faz contagens de ciclistas em diversas regiões da cidade. Chegamos às 6h e vamos embora às 20h. Ficamos observando não apenas quantas bicicletas circulam em um local, mas de que modo circulam. Nas contagens de Heliópolis, na avenida Imperador e em Cidade Tiradentes começamos a notar um fluxo de ciclistas diferente do clássico movimento pendular de ida ao trabalho na região central pela manhã, e retorno no final da tarde. Vimos movimentos mais acentuados à tarde, evidenciando um uso mais regional daquelas vias.
Na Cidade Tiradentes há um fluxo enorme de adolescentes usando uma ciclofaixa que mais do que ligar um terminal de ônibus a outro – como a Prefeitura gosta de justificar – liga várias escolas e um CEU a uma praça multiuso, com wi-fi público gratuito. Vimos diversos cadeirantes, que podem e devem usar a ciclofaixa, ocupando a rua. Ou seja, talvez a visão de que a malha cicloviária sirva apenas para ter o uso funcional de levar pessoas ao trabalho ou conectá-las a alguma estação de trem ou terminal de ônibus já esteja começando a se mostrar incompleta.
A periferia faz todos esses usos da bicicleta e da pouca malha cicloviária que lhe é acessível: de trabalho a lazer, de intermodalidade e da interregionalidade. No momento em que a bicicleta possibilita uma maior eficiência nos deslocamentos, seja como parte do trajeto para acessar um meio de transporte de alta capacidade, seja como uma forma de diminuir as distâncias dentro de sua própria região, mais pessoas passam a usá-la. Então, perceber essas possibilidades que a bicicleta traz seja talvez a porta de entrada para o diálogo.
P. Mas para o morador de periferia que trabalha longe a bicicleta acaba sendo um meio de transporte mais difícil, não é?
R. Já vemos alguns movimentos periféricos relacionados à pauta da bicicleta, mas talvez vejamos um grande florescimento desses movimentos no momento em que São Paulo efetivamente descentralizar seus postos de trabalho. Isso fará com que grande parte das pessoas da periferia não tenha que ficar de duas a quatro horas presa dentro de um trem ou de um ônibus para o seu principal deslocamento. Isso transformará o papel da bicicleta nessas regiões e, consequentemente, a forma como as pessoas percebem utilidade nela. Este grupo de pessoas terá, ainda, mais tempo para se dedicar à participação cívica. Aí sim veremos mais movimentos periféricos diversos que defendam a bicicleta como uma de suas pautas.
P. Por que defender a ampliação da malha cicloviária e não corredores de ônibus e outros modais públicos?
R. A prioridade deve vir primeiro para a mobilidade ativa – pedestres e bicicleta – e para o transporte coletivo. É por isso que temos atuado em uma coalizão mais ampla relacionada à mobilidade urbana. A licitação dos ônibus e terminais, por exemplo, dialoga diretamente com a eficácia e com a qualidade da intermodalidade que é oferecida à população. Seria falta de visão nossa não lutar, também, pela melhoria do transporte público junto com entidades parceiras.
Há outras dois pontos que merecem destaque. O primeiro é que, agora, por lei, os corredores de ônibus devem vir acompanhados de infraestrutura cicloviária. Ou seja, o assunto não nos interessa apenas porque também pegamos ônibus, junto com boa parte da população, mas porque implica em expansão do sistema cicloviário. Segundo, o sistema de bicicletas compartilhadas é, por definição, um sistema público e que está umbilicalmente ligado à redução do uso de automóveis em trajetos mais curtos – em especial, os que complementam os realizados por modos de alta ou altíssima capacidade, como o ônibus e o Metrô.
P. Mulheres ciclistas são minoria dentro do universo da bicicleta. Por quê? Como atrair mais mulheres para o modal?
R. Há vários fatores. A distribuição do tempo das mulheres, por exemplo, muitas vezes é mais complexa em comparação à dos homens, devido ao maior envolvimento em responsabilidades domésticas. Também existe o papel da família patriarcal como inibidora do uso da bicicleta – a mulher não pode ou deve se locomover em um veículo “arriscado”. E além disso temos os processos de socialização na infância, que criam ambientes diferentes para homens e mulheres (o menino ganha a bicicleta, a menina ganha a boneca). Cada uma destas explicações sobre a disparidade entre homens e mulheres na participação no uso da bicicleta parece plausível. Acredito que o maior uso da bicicleta pelas mulheres passa, em primeiro lugar, por políticas que garantam igualdade de gêneros e combate ao patriarcalismo. Depois, devem vir as políticas cicloviárias pensadas também por mulheres, para mulheres, que abarquem uma resposta aos principais riscos.
P. Daniel Guth, ex-diretor do Ciclocidade, abriu mão do cargo após ser acusado de ter agredido uma integrante de um coletivo. Como a entidade lida com esse caso?
R. A Ciclocidade, assim como acredito que seja a realidade de muitas outras organizações, não estava preparada de antemão para lidar com casos como este. Em respeito à transparência e à ética, imediatamente foi chamada uma Reunião Geral Extraordinária aberta e buscamos 1) proteger as vítimas, 2) darmos uma resposta enérgica e rápida à questão da violência e 3) conseguirmos a manutenção da governabilidade da Associação. Entendemos que a luta da Ciclocidade não é só pela maior inserção da bicicleta no ambiente urbano como modal de transporte em São Paulo. A luta da Ciclocidade é pela construção de uma cidade mais humana e isso passa impreterivelmente pela promoção da igualdade de gêneros e do combate ao machismo. Do ponto de vista institucional, já fizemos uma recomposição da diretoria, mas muito resta a ser feito. Temos um estatuto ultrapassado. A Associação precisa da sua reforma imediatamente, já prevendo o tratamento de casos como este e outros que não constam da primeira redação.
R. Deve usar capacete quem acha que deve usar capacete. Eu não uso, mas sou extremamente preocupado em ter iluminação sempre! Como política pública, uma eventual obrigatoriedade de usar o capacete implicaria em burocratizar um modo de transporte que é essencialmente simples e prático. Algo assim introduziria mais elementos e custos, sem necessariamente trazer mais segurança. A eficácia de um capacete em um atropelamento é bastante questionada na literatura médica. Localidades que tentaram obrigar o uso de capacete, de um modo geral, viram um desestímulo ao uso da bicicleta. Há modos muito mais eficazes de garantir a segurança do ciclista, como reduzir velocidades, punir quem age colocando quem pedala e o pedestre em risco. Focar na questão “capacete ou não capacete” pode transferir para o indivíduo, sem qualquer base científica, uma responsabilidade sobre a segurança viária que é do poder público, como diz o próprio Código de Trânsito Brasileiro.
P. O que você diria para alguém que pensa em começar a pedalar em São Paulo, mas não tem experiência?
R. Eu diria para experimentar. O grande empecilho para quem começa a pedalar é compartilhar vias com carros, ônibus e outros veículos automotores. Experimente começar por ruas calmas, que levem até alguma infraestrutura cicloviária. Vale até pedalar alguns trechos pela calçada, claro que em baixa velocidade e sem colocar o pedestre em risco. São Paulo tem hoje aproximadamente 400 quilômetros de vias com ciclovias ou ciclofaixas e uma boa parcela desta malha ainda não está interligada. É natural que algumas pessoas tenham receio, mas só experimentando para saber como é.
P. Quais seriam as medidas mais importantes em termos de mobilidade cicloviária que deveriam ser adotadas pela prefeitura?
R. A medida mais importante é o respeito às leis. A Política Nacional de Mobilidade Urbana diz que uma diretriz é a “prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”. O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo diz que a prefeitura deve “adotar medidas para redução de velocidade dos veículos automotores, visando garantir a segurança de pedestres e ciclistas”. No âmbito da Organização das Nações Unidas, o Brasil é signatário da Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2011 – 2020, por meio da qual governos de todo o mundo se comprometeram a adotar novas medidas para diminuir pela metade os acidentes no trânsito, que matam cerca de 1,3 milhão de pessoas por ano. Isto significa levar a sério o planejamento cicloviário existente. Se fizerem isto, já está excelente.
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Por Gil Alessi no El País.