Na segunda metade do século XX a discussão sobre a cidade e o planejamento urbano tomou corpo. O tema surgiu tímido, ainda no século XIX, e enveredou para o urbanismo tecnicista do movimento moderno e da Carta de Atenas, focado nos deslocamentos em carro e da setorização das cidades e implantação de subúrbios.
Mas, na década de 1950, as cidades devastadas pela Segunda Guerra, começaram a ser reconstruídas, e o zoneamento restritivo tecnicista passou a ser colocado em cheque. Urbanistas e sociólogos observaram que organizar a cidade com segregação de funções não trazia bons resultados, pois a vida acontece onde há mistura, sobreposição de funções. A cidade da especulação e do automóvel começou a ser colocada em cheque.
A nova cultura urbana outorgou um novo papel aos espaços públicos, surgindo com força as disciplinas do paisagismo e desenho urbano. Nesta época, a discussão da qualidade do espaço urbano tomou forma nos clássicos trabalhos de Jane Jacobs: “Morte e Vida das Grandes Cidades” e de Henri Lefebvre: “O Direito à Cidade“. Ambos criticam o urbanismo racionalista, questionando os princípios da Carta de Atenas, valorizam os bairros e comunidades tradicionais
Neste contexto estão Lerner e Gehl. Ambos concluíram seus estudos de arquitetura no início da década de 1960, e ambos desenvolveram trabalhos e pesquisas sobre o espaço urbano e as relações com a mobilidade.
Jaime Lerner nasceu na cidade de Curitiba (PR) e se formou em arquitetura e urbanismo pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal do Paraná, em 1964. Jan Gehl nasceu na cidade de Copenhague (Dinamarca), se formou arquiteto em 1960, na Real Academia de Belas Artes de Copenhague, onde posteriormente também lecionou.
Através da vida acadêmica, Jan Gehl iniciou seus estudos e pesquisas sobre mobilidade urbana e sobre a cidade. A primeira rua de pedestre de Copenhagen foi inaugurada em 1962 e Gehl passou a observar e analisar como as pessoas usavam o espaço, que não tinha acesso a carro, em diversas situações do dia a dia.
A bandeira de Gehl foi defendida no mundo a partir da publicação internacional de seu livro “Cidade para Pessoas em 2010”, mas suas ideias já haviam conquistado a capital Dinamarquesa desde os anos 1960. Tanto que, a transformação de Copenhagen em uma cidade para pessoas, vem acontecendo paulatinamente nestes últimos 50 anos como um conceito a ser perseguido. Hoje, a maioria dos deslocamentos na cidade são feitos em bicicleta, cada cidadão mora a 10 min a pé de um espaço público estruturado e o sistema de transporte público é extremamente eficiente.
A mobilidade urbana também foi um ponto de forte interesse de Lerner, que ainda na faculdade desenvolveu o Plano de Circulação da Cidade, e, quando assumiu como prefeito de Curitiba em 1970, desenvolveu o plano que tornou a cidade uma referência internacional. Lerner queria facilitar os deslocamentos na capital e, em setembro de 1974, implementou a primeira linha expressa de ônibus em corredores, em um projeto simples e eficiente, que posteriormente evoluiu com as estações em tubo.
Mas o arquiteto e político não parou por aí, em seus três mandatos como prefeito e dois mandatos como governador, a temática urbana sempre esteve em alta: “É necessário saber montar equações de responsabilidade para solucionar vários problemas. Não é uma questão de dinheiro ou escala do município. As cidades que realizam coisas boas são as que montam equações de responsabilidade interessantes”, disse Lerner.
Nas palavras do jornal britânico The Guardian, ideias radicais tornaram Curitiba a “capital verde brasileira”. As decisões arrojada de Lerner colocaram a cidade como um modelo de planejamento urbano sustentável, pioneira do sistema BRT (Bus Rapid Transit), e na qualificação dos espaços públicos e racionalização do uso do automóvel.
Em 2017 em Master Class no escritório de Jan Gehl, alguns participantes, ao se depararem com profissionais de origem brasileira, pediram comentários sobre o exemplo de Curitiba, que para eles, em Copenhagen, é importante referência de urbanismo.
O ponto de todo esse paralelo é: como as cidades dinamarquesas assumiram rapidamente os conceitos pregados por Gehl na construção de cidades para pessoas com ciclovias e usos mistos, baixo impacto e alta sustentabilidade, valorizando o trabalho do planejador e arquiteto urbanista e, no Brasil, todos reconhecem a qualidade de Lerner mas suas ideias não alcançaram nem de longe o eco que poderiam.
O próprio Lerner em entrevista à BBC (via São Paulo São), fala que os brasileiros amam o urbanismo europeu mas que, quando retornam ao Brasil, emergem novamente na cultura do carro, ainda muito fortalecida no nosso urbanismo (por influência norte americana)
Os escritórios de Lerner e Gehl desenvolvem consultorias para as mais importantes cidades do mundo, e atualmente defendem estratégias para convencer mais facilmente prefeitos e gestores públicos na tomada de decisões: “acupuntura urbana” ou Tactical Urbanism, ou seja ações rápidas, pontuais e relativamente baratas para resolver os problemas das cidades.
Lerner publicou esse assunto em um livro e Gehl criou um manual para os prefeitos. Muito bem, talvez o que nos falte não seja grandes arquitetos urbanistas, o que falta no Brasil ainda é desenvolver a cultura da cidade para pessoas, é abandonar o ranço capitalista do carro e da segregação. Isso na minha humilde opinião é uma questão um tanto sociológica.
Na Dinamarca e em outros países europeus não observamos a concentração de renda que existe no Brasil, onde 1% da população concentra 28,3% da renda do país. Por que essa questão é importante quando falamos em projetos de cidades mais humanas e sustentáveis? Porque o direito à cidade nasce do direito à qualidade de vida, que envolve emprego, renda, saúde e alimentação.
Outro fator relevante a ser observado, destacado pelo próprio Lerner, é que a transformação das cidades é um ato de coragem e iniciativa das autoridades. Lerner foi a autoridade política com capacidade técnica, por isso conseguiu colocar em prática conceitos que vários urbanistas brasileiros defendem mas que não chegam às gestões, pois muitas vezes alguns gestores não consideram adequado comprar certas brigas em prol da construção de cidades mais justas e sustentáveis.
Em 2017, a revista americana Planetizen, especializada em planejamento urbano, colocou Jaime Lerner, em segundo lugar numa lista com os urbanistas mais influentes da história, atrás apenas de Jane Jacobs e à frente de nomes como Le Corbusier, Jan Gehl ou Ebenezer Howard. O mestre em urbanismo Mauro Calliari considerou Lerner um dos maiores urbanistas da história, em sua coluna.
O maior reconhecimento à ele seria o entendimento da importância dos Institutos de Planejamento Urbano, das políticas públicas por cidades mais humanas, verdes e sustentáveis em nosso país. Lerner foi transformador mas temos que receber suas idéias de braços abertos.
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São Conexões: a Tegra Incorporadora é parceira da iniciativa.
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Por Ana Paula Wickert da Redação.