Bairro, a unidade mínima de apropriação da cidade

Georges Perec, escritor francês, descreve “aquilo que em geral não se nota, o que não tem importância: o que acontece quando nada acontece, a não ser o tempo, as pessoas, os carros e as nuvens”.

Fico fascinada com os limites, os entornos, os espaços urbanos e como se delimitam ou se diluem. Como cada pessoa sente o que acontece ao seu redor, como transpira seu olhar, como os lugares a acolhem como ela interage com eles. E aí, no meu olhar de urbanista, aparece a palavra “mágica”, BAIRRO, a unidade mínima de apropriação da cidade.

Ao longo do século XX, vários teóricos quiseram definir o que que é, a sua forma, seu tamanho. Christopher Alexander o define como “comunidade autônoma”;  Giorgio Rigotti, “célula urbana”;  Clarence Perry “unidade de vizinhança”: todos eles concordam que o bairro é uma entidade  com um raio de 400 metros – cinco  minutos a pé. Eles,  urbanistas,  usam essas medidas para poder medir e estruturar as partes da cidade(2).

Ilustração / Reprodução.

Mas Perec não. Como falei, ele gosta de aquilo que em geral não se nota. Eu também. É por isso que amei a definição que ele dá para o bairro: “Bairro é a parte da cidade à que não há que se transladar, pois já estamos nela” (3). E essa definição não entende de medidas, entende de sentimentos. Sentimentos de pertencimento!

Ilustração: Irene Quintáns.

O bairro acontece em qualquer lugar da cidade. Não só nas áreas nobres, não só nas áreas periféricas. Jan Gehl (4) explica de uma forma muito simples o que é preciso para um espaço urbano ser, de fato, um espaço urbano (e não uma “terra de ninguém”): espaços para caminhar, lugares para estar, para poder ficar em pé, para poder sentar, para poder ver- escutar-falar. Essas são as coisas necessárias para sentir-se acolhido em um espaço da cidade. Sem isso, não existe bairro, não nos sentimos dentro dele, parte dele.

Higienópolis em São Paulo. Foto: Irene Quintáns.

Praça no Jardim Ângela, São Paulo. Foto: Irene Quintáns.

E as crianças, elas constroem na sua relação com a cidade esse conceito. Sabe, depende. Depende se nós, adultos, deixamos ou não.

Veja dois desenhos onde uma criança vai até a escola em transporte escolar e outra caminha.

Pesquisa Mobilidade nas escolas de São Miguel Paulista, São Paulo. Imagem / Reprodução.

Desenhos de Flying Tiger. Depoimentos dos alunos da aula Criança e a cidade do Instituto Singularidades. Imagem / Reprodução.

Há algum tempo, fui convidada para ministrar uma aula no Instituto Singularidades sobre a relação da criança com a cidade. Lá, antes de refletir sobre o olhar da criança, os alunos (adultos) trouxeram algumas descrições muito lindas.
 
“Bairro é a área geográfica que fica onde  estão comportados os moradores que você pode chamar de vizinhos”.

“Bairro é um pedaço de cidade onde vivemos histórias, guardamos memórias”.

Caminhar livremente pela cidade, ter lugares onde estar. Passos e espaços.

E os bairros surgem, nascem, mudam. Precisamos o sentimento de pertencimento desde sempre.

Referências
 
(1) PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. Edição original de 1975. Reedição de Gustavo Gili, Barcelona, 2016. Tradução ao português de Ivo Barroso
(2) http://evstudio.com/the-neighborhood-unit-how-does-perrys-concept-apply-to-modern-day-planning/
http://evstudio.com/the-five-minute-walk-calibrated-to-the-pedestrian/
(3) PEREC, Georges. Espéces d’espaces
(4) GEHL, Jan. Life between buildings: using public space / 2006.

***
Irene Quintáns é arquiteta urbanista com pós-graduação em Estudos Territoriais, Políticas Sociais, Mobilidade, Habitação e Gestão Urbanística. É fundadora e diretora da Rede OCARA onde este artigo foi publicado originalmente.

 

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