Beleza se põe à mesa

Em relação ao comer, a história não difere muito – se um dia o alimento teve função apenas de garantir sobrevivência ao ser humano, com o passar do tempo atingiu outras dimensões e, permeado por questões econômicas, sociais, religiosas ou geográficas, o alimentar-se também adquiriu seus códigos, rituais e cuidados.

Olhando essa evolução de modos e costumes, podemos observar ainda um outro aspecto, mais sutil porém não menos imporante: a necessidade do ser humano de conferir maior prazer a atos que, por essenciais à sua própria existência, lhe são obrigatórios. À medida que o homem adquiriu consciência e percepção de si mesmo, de seus gostos e prazeres, não lhe foi mais possível suportar a infinita repetição, mecânica e cotidiana, de afazeres essenciais. Ampliar o sentido desses afazeres tornou-se inevitável – era preciso satisfazer as necessidades de nosso corpo tanto quanto os desejos da alma.

A qualquer ato ou realização do ser humano, bem como às diversas maneiras de nos relacionarmos com eles e entre nós mesmos, podemos conferir beleza e, por decorrência, propiciarmo-nos prazer. Na introdução de seu livro “A beleza salvará o mundo” (Ed. Difel, 2011), o filósofo Tzvetan Todorov explica que a beleza, seja a de uma paisagem, a de um encontro ou a de uma obra de arte, não remete a algo para além dessas coisas, mas nos faz apreciá-las enquanto tais  – e, assim, nos permite experimentar a sensação de habitar plena e exclusivamente o presente.

Estar à mesa para desfrutar de uma refeição é uma das mais frequentes e ricas oportunidades que temos de experimentar essa sensação – e é espantoso ver quantas pessoas a desperdiçam diariamente, relacionando-se com o ato de se alimentar como faziam aqueles nossos ancestrais. E isso não por imposição da falta de tempo: uma mesma quantidade de tempo pode ser usufruída de diferentes maneiras.

À mesa, as cores e formas dos objetos dispostos, o paladar de um certo alimento, os aromas que nos rodeiam, o encontro com o outro, ou o encontro consigo mesmo, tudo são possibilidades de desfrutar dessa plenitude – no dizer de Todorov, “sensação fulgaz e ao mesmo tempo infinitamente desejável, pois graças a ela nossa existência não decorre em vão; graças a esses momentos preciosos, ela se torna mais bela e mais rica de sentidos.”

Em uma cidade que muitas vezes nos confronta com a brutalidade e a aridez, é fundamental sermos amorosos e generosos com nós mesmos, conferindo toda beleza possível a nosso cotidiano. E cada refeição nos traz essa chance do encontro com o belo – basta estarmos atentos. Tenhamos dez minutos ou tenhamos duas horas, podemos sim qualificar esse momento, e satisfazer as necessidades do corpo ao mesmo tempo em que atendemos aos desejos da alma.

"Diga-me o que come e eu lhe direi quem você é." Aforismo de gastronomia do livro "A Fisiologia do Gosto" (1825) de Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826). Imagem: reprodução.

A beleza que se põe à mesa coloca também uma pitada de prazer no nosso dia, contribuindo para ampliar o sentido de nossa prosaica existência e nos fazer um pouquinho mais felizes.

***
Valéria Midena, arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção, escreve quinzenalmente no São Paulo São. Ela é autora e editora do site SobreTodasAsCoisas, produtora de conteúdo e redatora colaboradora do MaturityNow.

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