Brasília, 60 anos. A urbanidade e o caminhar na capital brasileira

Ao completar 60 anos, Brasília continua chamando a atenção. Ninguém parece ficar indiferente aos defeitos e qualidades da primeira cidade contemporânea a se tornar Patrimônio Cultural da Humanidade. No aniversário da capital brasileira, escolhemos falar da caminhabilidade, para mostrar que as polêmicas sobre a falta de urbanidade têm razão de ser.

Caminhar em Brasília tem o prazer das áreas verdes, a sensação de vizinhança das superquadras e o incrível horizonte onipresente. Em compensação, tem as enormes distâncias, as travessias impossíveis de eixos e a briga constante com os automóveis.

Grande parte desses prazeres e dificuldades pode ser explicado pela maneira como a cidade foi concebida.

O projeto de cidade e as pessoas

Juscelino Kubitschek e Lúcio Costa em Brasília, 1957. Foto: Jean Manzon.

Brasília é filha de um momento histórico e de um projeto urbanístico muito definido. Desde a cruz traçada por Lúcio Costa (e que faz alguns pensarem num avião), a cidade foi planejada e construída segundo princípios claros; separação de funções, monumentalidade, deslocamentos preferencialmente feitos por automóveis, unidades de vizinhança. As maiores críticas em relação à falta de urbanidade de Brasília vieram de urbanistas e escritores de fora do Brasil.

Um deles é Jan Gehl, o urbanista dinamarquês que ganhou notoriedade mundial pregando a volta da “escala humana” no planejamento urbano. Em suas palestras (como a que tive a oportunidade de assistir há alguns anos no Mackenzie), entrevistas e no livro Cidade para Pessoas, Gehl usa Brasília como exemplo do insucesso do modernismo: “a síndrome de Brasília”. Para ele, o problema é ela ter sido pensada a partir de um ponto de vista estético e de fora, enfatizando apenas as duas escalas maiores – a escala urbana e a escala do empreendimento. Assim,

“a cidade é uma catástrofe ao nível dos olhos, as escalas que os urbanistas ignoraram. Os espaços urbanos são muito grandes e amorfos, as ruas muito largas, e as calçadas e passagens muito longas e retas. As grandes áreas verdes são atravessadas por caminhos abertos pela passagem das pessoas, mostrando como os habitantes protestaram, com os pés, contra o rígido plano formal da cidade”. (Cidade para pessoas,  p. 196-7)

Em entrevista para o Correio Braziliense, Frederico de Holanda, professor emérito da UNB e autor do livro Arquitetura e Urbanidade, reage de maneira enérgica aos comentários de Gehl.

“Dizer que Brasília é ‘uma merda’ [Gehl chegou a falar isso numa entrevista, apesar de não usar a expressão no livro] é inaceitável. É não se dar conta de todos os projetos a partir da visão histórica do que se fazia no mundo daquele momento. Nos 26 inscritos para o projeto de Brasília não tem ninguém que chegue aos pés de Lúcio Costa. Ninguém fez o que ele fez: deu o caráter simbólico, conferiu a identidade como capital federal.”

Outro autor que emitiu opinião forte sobre a cidade é o escritor americano Marshall Berman, autor do influente livro sobre os precursores da modernidade Tudo que é sólido desmancha no ar. Nele, Berman conta de sua impressão ao visitar a cidade, em 1987:

“Vista do nível do chão, porém, do lugar onde as pessoas moram e trabalham, é uma das cidades mais inóspitas do mundo. […] Há uma ausência deliberada de espaços públicos em que as pessoas possam se reunir e conversar, ou simplesmente olhar uma para a outra e passar o tempo”. (pgs. 13-14)

Ele ressalta que o próprio Oscar Niemeyer respondeu às críticas, sugerindo que um ataque à cidade poderia ser visto como um ataque ao próprio povo brasileiro. Berman conclui que é difícil aceitar um tipo de modernismo que não esteja aberto a mudanças a partir de um projeto original.

Talvez seja anacrônico acusar o projeto de Brasília pelos defeitos de falta de urbanidade e de gerar uma dependência do carro. Afinal, em 1956, quando foi realizado o concurso para a cidade, empreendimentos e bairros pelo mundo todo estavam sendo construídos segundo os preceitos modernistas.

Um dos pontos de inflexão no modo de ver as cidades, por exemplo, o livro Morte e vida das grandes cidades, de Jane Jacobs, seria publicado apenas em 1961, quando Brasília já tinha um ano. Também não era possível vislumbrar o que estava sendo gestado em Copenhagen, a partir de experiência em outras cidades européias – a pedestrianização da rua mais importante da cidade, a Stroget, também em 1961, que começaria a estabelecer um novo paradigma de ocupação das regiões centrais de cidades européias e que se espalharia pelo mundo.

Também não custa lembrar que o mesmo presidente Juscelino Kubitschek que encampou a construção de Brasília foi quem incentivou a indústria automobilística a se instalar no país e a nacionalizar a maior parte de sua produção. Os automóveis ocuparam espaço no imaginário de todas as grandes cidades brasileiras, mas em Brasília, tornaram-se essenciais para os deslocamentos e não é por acaso que uma das imagens recorrentes dos governantes de todas as gestões sejam os carros oficiais entrando e saindo de palácios, congresso e ministérios. Seja como for, Brasília é um símbolo de uma era e a experiência de andar na cidade hoje parece guardar uma ligação direta com essa época.

Construída entre 1956 e 1960, a capital brasileira incorporou vários conceitos que influenciaram diretamente o caminhar, como a segregação do pedestre, a separação de funções, a hierarquia entre as vias e a prioridade para o fluxo de automóveis.

Não deixa de ser interessante pensar que o ponto central da cidade tenha sido ocupado por uma estação de transporte e não uma praça ou prédios. O simbolismo de um nó viário no cruzamento dos dois eixos – o Eixo Rodoviário e o Eixo Monumental – parece expressar o desequilíbrio entre os espaços de permanência e de passagem, entre os fluxos e os lugares.

No Relatório do Plano Piloto de Brasília, de Lúcio Costa, há um trecho que explicita a importância do sistema viário e a relação entre o automóvel e o pedestre:

“Fixada assim a rede geral do tráfego automóvel, estabeleceram-se, tanto nos setores centrais como nos residenciais, tramas autônomas para o trânsito local dos pedestres a fim de garantir-lhes o uso livre do chão […] sem contudo levar tal separação a extremos sistemáticos e antinaturais pois não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim dizer, parte da família. Ele só se “desumaniza”, readquirindo vis-à-vis do pedestre feição ameaçadora e hostil quando incorporado à massa anônima do tráfego. Há então que separá-los, mas sem perder de vista que em determinadas condições e para comodidade recíproca, a coexistência se impõe”

Esse trecho ilustra, até com didatismo, dois pontos do pensamento urbanístico que originou a cidade. O primeiro é a referência à transformação do carro no imaginário coletivo, de “inimigo” a domesticado. A segunda é a própria essência da fundação da cidade, cuja hierarquia fica clara na primeira frase: “Fixada assim a rede geral do tráfego automóvel estabeleceram-se […]  tramas autônomas para o trânsito local dos pedestres”. Do ponto de vista de prioridades, não há dúvida: o sistema estruturante da cidade moderna é o viário. O resto, incluindo o pedestre, será consequência.

Mas, será que monumentalidade é necessariamente o oposto de urbanidade?

Andar por Brasília é uma experiência poderosa.

É difícil não sentir o contraste das formas surpreendentes dos edifícios com o céu colorido do Planalto Central. A vista da Esplanada dos Ministérios é de perder o fôlego.

Andar a pé por esse lugar, porém, é uma experiência tanto impressionante quanto desanimadora.  Tempos atrás, tive que fazer reuniões no prédio do MEC e resolvi ir andando. Mesmo uma caminhadinha de um quilômetro transforma-se num périplo tal é a distância percebida. Pode-se argumentar que fosse justamente essa a intenção: tornar pequena cada pessoa, diante do poder dos símbolos da República. Existem exemplos, porém, de lugares onde a monumentalidade não ofuscou a vida nas ruas. Washington, por exemplo, é uma cidade em que caminhar é uma experiência que pode ser muito agradável.

Fundada em 1791 a partir do projeto de Peter Charles L’Enfant, Washington combina as grandes avenidas, num grid que mistura a quadrícula com vias diagonais, como foi feito em Belo Horizonte, mais de um século depois. A largura das avenidas, ainda na época das carroças e cavalos, inicialmente assustava pedestres e visitantes, a tal ponto que o escritor inglês Charles Dickens, em visita à cidade, escreveu que as avenidas eram tão largas “que começam em nenhum lugar e levam a lugar nenhum”.

Mesmo com as avenidas, porém, o fato é que há vida nas ruas de Washington, com seus prédios de poucos andares, lojas no térreo, sinalização e calçadas largas. A cidade é tida como “muito caminhável” pelo site americano Walk Score enquanto Brasília aparece como “dependente de carro”. Até a Casa Branca, em que pese sua importância e simbolismo, está razoavelmente inserida na cidade e pode-se chegar até ela a pé quase sem perceber. Em Brasília, ao contrário, a separação de funções e o desenho urbano desestimulam os trajetos a pé. A experiência de andar, porém, não é homogênea e vale a pena explorar alguns lugares para formar um julgamento.

Caminhar em Brasília

A experiência do caminhar em Brasília é multifacetada e certamente mais complexa do que a anedótica descrição de Jan Gehl, que não vive na cidade. Para entender melhor os problemas e os prazeres de andar a pé na cidade, entrevistei o ativista da mobilidade ativa, colaborador da ONG Mobilize Brasil e fundador do blog Brasília para Pessoas, Uirá Lourenço. A primeira constatação é a de que andar a pé em Brasília é uma experiência única:

“a experiência de caminhar em Brasília é bem diferente em relação a outras cidades […] É agradável caminhar pelas áreas verdes e apreciar a flora e a fauna urbana. Por outro lado, em razão da alta dependência automotiva, da setorização e das longas distâncias a percorrer (existência de vazios urbanos), noto que se caminha pouco em relação a outras cidades”

Caminhar nas superquadras

A grande qualidade do projeto de Lúcio Costa para o pedestre parece estar nas possibilidades que oferece de circulação dentro das superquadras. “O acesso livre sob os blocos é algo bem interessante não só pelo aspecto da acessibilidade, mas também de convivência e interação” complementa Lourenço.

As superquadras concretizam o conceito de unidade de vizinhança (em teoria, cada 4 superquadras de 280 metros de lado, constituiria uma unidade com lojas, igreja e escola). Andar ali é fácil e agradável. Os térreos abertos se integram às áreas verdes e cada bloco de prédios ganha acesso fácil ao comércio local, nas ruas que dividem as quadras. Crianças brincam no gramado enquanto pessoas chegam a pé para os bares e as lojinhas.

Nessas ruas, ainda é possível ver os resultados da campanha feita com os moradores na década de 1980, estimulando o respeito á faixa de pedestres. De fato, os motoristas ainda surpreendem os visitantes de outras cidades ao parar nas faixas. Holanda elogia esses espaços:

“Temos a ocupação rotineira: a da utilização da superquadra para lazer. Não tem dia que não encontre gente embaixo do bloco. Vemos desde pais, mães com bebezinhos, crianças, adolescentes até velhinhos jogando carteado nos jardins.”

Andar nas grandes avenidas

Se andar dentro das superquadras ou entre elas é agradável, tentar sair delas é um pesadelo. É aqui que as calçadas somem e o risco ao pedestre aumenta.

A maior dificuldade é a transposição dos grandes eixos, onde fica evidente a enorme desproporção entre a escala humana e a escala do automóvel, a monotonia nos deslocamentos, a falta de faixas, a impossibilidade de acessar pontos mais distantes da cidade (e as cidades vizinhas) que não estejam dentro do perímetro da unidade de vizinhança. Lourenço complementa:

“O Trevo de Triagem Norte (TTN) – ‘maior obra de mobilidade na história do DF’ segundo o Governo do Distrito Federal – simboliza bem o rodoviarismo atrasado, caro e poluente. O complexo de 28 pontes, túneis e viadutos ignora completamente o transporte ativo. Em meio a tantos túneis e viadutos, pedestres e ciclistas foram esquecidos e ficam sem qualquer investimento (calçadas, ciclovias e pontos de travessia). Outro grande entrave para pedestres e ciclistas é o alto limite de velocidade. Em muitas vias, como o Eixão (que corta a cidade de norte a sul), a L4 e a EPIA, o limite é de 80 km/h (longe dos radares passa facilmente dos 100 km/h). Enquanto isso, as condições para caminhar continuam péssimas. O descaso com os pedestres é evidente e basta um trajeto curto a pé para comprovar a total inacessibilidade“.

No único levantamento brasileiro de qualidade de calçadas, do Portal Mobilize, Brasília não está tão mal ranqueada dentre as grandes cidades, em 7º lugar, mas o relatório especifica que os piores lugares são justamente as travessias dos grandes eixos de circulação de automóveis, em que faltam calçadas, sinalização, sinais de pedestres e as passagens subterrâneas são inóspitas.

As demais cidades do Distrito Federal não entram nesse levantamento e nem nesse texto, mas o contraste entre o plano-piloto, planejado e seguido à risca, e as cidades-satélites merecem uma abordagem específica. Afinal, Brasília é a região metropolitana brasileira em que os habitantes se deslocam as maiores distâncias para chegarem ao centro.

Concluindo

Andar a pé em Brasília é uma experiência multifacetada. Concebida numa época em que o Brasil começava a abraçar os automóveis, a cidade é difícil de ser percorrida a pé.

Para os que moram nas superquadras, a experiência pode ser prazerosa e rica. Para quem se desloca entre as demais regiões da cidade, tudo fica mais difícil; as distâncias percebidas são enormes, há falta de calçadas e as grandes avenidas não ajudam.

Brasília tem os símbolos de poder, a originalidade e a monumentalidade de uma capital, mas o projeto original fica devendo em urbanidade.

Em uma entrevista de alguns anos atrás, a urbanista Regina Meyer, que morou anos em Brasília, fala das dificuldades de se alterar o projeto original:

“Não há como negar que Brasília mostrou rapidamente suas fragilidades, isto é, a vida cotidiana deixa claro que aquela não é a forma mais adequada de se projetar a cidade do futuro. O projeto fechado, elaborado com todos os condicionantes da década de 1950, deixava poucas brechas para incorporar o novo.”

Cabe aos cidadãos e governantes encarar a ocupação dos espaços públicos como parte da vida urbana e realizar aquilo que se espera de uma cidade tão emblemática e importante como Brasília, que ela melhore com o tempo e que a infraestrutura reflita os novos usos que seus habitantes fazem dela.

 

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