Caminhar pelas escadas do prédio: uma experiência com seus encantos, surpresas e tristezas

Passo rapidamente pelos andares, mas, enquanto cruzo o hall para continuar na escada, consigo ver nas portas de cada casa, os traços das vidas de vizinhos que não conheço.

Nas portas, os tapetinhos acolhem os visitantes: “Bem-vindo” (com hífen), “Bem vindo” (sem o hífen), “Be happy”, “I – patinha de cachorro em forma de coração – DOG”  e o meu preferido “Entre e curta”. Dá vontade de entrar, imagino uma casa animada, onde os visitantes são recebidos com um copo de vinho e um sorriso.

Os sapatos para fora das portas são uma atração especial. Há vários, por toda parte. No terceiro andar, porém, tem o meu preferido, o casal do All Star. Antes, tinha só um par, vermelho. Um dia, apareceu outro par, um branco, menorzinho, como se não pudessem ficar longe um do outro. Gosto de imaginar que pertencem a um casal simpático, que  descem juntos o elevador para o trabalho ou para a farmácia, cada um com seu par de tênis preferidos mesmo que não sejam os mais confortáveis, enfrentando com máscaras coloridas e gel com gliter os perigos das calçadas em época de pandemia.

Há horas em que o prédio parece estar numa grande atividade culinária. Vou percebendo os cheiros e adivinhando as comidas. De manhã, há café sendo coado no 9º andar. No almoço, feijão parece ser a preferência generalizada. É fácil de sentir o cheiro, às vezes misturado com cebola e alho sendo refogados, como no 2º andar ou com o que eu presumo seja salsão, no 4º.  Sigo em frente e anoto mentalmente: “comprar salsão na próxima ida ao supermercado”.

As vozes também vazam pelas portas. No 3º andar ouço crianças gritando e uma voz de mãe gritando de volta, impaciente. No 1º, tem o chiado eterno de uma panela de pressão. No 8º andar, atenção, o cachorro invisível late alto, protestando contra minha passagem pelo seu território. O som que eu mais gosto é a música. No 5º, ouço a voz afinada de  um homem que canta bonito, bem alto, acompanhado de uma guitarra e corinho tímido de meninas ao fundo. Sigo em frente, ouvindo a música até sumir.

Outro dia, subindo com uma sacola de supermercado ouvi o som mais triste de todos, já quase no  meu andar. Era um choro de um menino, um lamento pungente, doído. Dava para ouvir os soluços, sentidos, incontroláveis.

Segui em frente, mas continuei pensando nessa tristeza toda. Lembrei de como é difícil ser um menino de dez, onze anos. Especulo. Talvez ele estivesse chorando porque fez as coisas que meninos de dez, onze anos fazem e tenha sido repreendido pelos pais onipresentes no confinamento. Talvez tenha se sentido impotente e sozinho diante de um mundo tão cheio de grandes mistérios e minúsculas entidades virais, preso num apartamento, sem espaço para seus próprios pensamentos e sem autonomia para sair e dar um grito redentor no meio da rua.

Quando puder tirar a máscara e encontrar as pessoas, penso em tocar a campainha da casa do cara que toca músicas bonitas e levar uma cerveja. Torço também para encontrar o casal do All Star  na rua e ver se eles parecem com os personagens simpáticos que eu inventei.

Mas quem eu gostaria mesmo de conhecer era o menino que chorou e soluçou com tamanha veemência. Iria dizer a ele que a tristeza vai passar e que o tempo vai lavando as lágrimas, que outras tristezas virão e que nossa vida no fundo no fundo é enfrentar cotidianamente a dor e seguir adiante mesmo assim, subindo e descendo os inevitáveis degraus que estão à nossa frente.

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Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. Artigo publicado originalmente no seu blog Caminhadas Urbanas.

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