Carta ao Benjamin de Clarice, uma autora feminista sim

No português, meu caro, o aparelho benjamin é um acessório para eletricidade, serve para conexão e melhor uso da energia. No benjamin, você liga várias entradas de aparelhos eletrônicos em uma só tomada. Um ponto de conexão para vários mundos; assim é o benjamin aparelho e mais ainda seja o biógrafo de Clarice, bela metáfora para você e sua energia.

E é assim que a plateia que vai assisti-lo no Brasili o chama, você descobriu nesta primeira semana de julho de 2016, o batizaram “benjamin de Clarice”. E você vai voltar para a Holanda, com mais esse título de nobreza clariciana. Aliás bem nobre para quem assumiu a missão de divulgá-la pelo mundo. Mas antes está por aí no Rio Grande Sul. Aliás foi aí que Clarice, lí numa reportagem certa vez, notou que o jovem Caio Fernando Abreu ficou extasiado e não conseguia falar e pediu que ele chegasse perto dela, assim ele ganhou um autógrafo. Ele confessou que não podia acreditar que estava tão perto dela. E não conseguiu reagir.

Para você que, Oxalá, aprendeu a falar tantos idiomas, qual o antônimo da palavra hipocrisia? Talvez lealdade, algo assim. E traduza do seu jeito e no melhor idioma. Que tal pensarmos juntos nessa coisa que é a não-hipocrisia? É isso que você tem feito, jogado uma luz de não-hipocrisia nas coisas, transcendendo às análises acadêmicas.

Quero muito contar tudo o  que elaborei sobre Clarice na leitura do que você tem escrito, mas o espaço é curto. E temos tanta vida numa vida, assim espero. Ao ouvir sua narrativa, penso nas coisas da vida que reabilitam a saúde de uma alma, o abraço de um amigo, a lambida de um cão, água fresca, um mergulho n’água o respirar inteiro de quando se sai de uma crise de pneumonia. Levada por você, penso um pouco na história de vida de algumas escritoras mulheres do último século e penso em minhas amigas e conhecidas jornalistas e autoras de livros que estão hoje vertendo seu trabalho ao mundo, como Patricia Campos Mello, Adriana Carranca, Andrea Del Fuego.  

E foi um sentimento de que se pode viver com menos hipocrisia que você nos provocou num momento de tanto conservadorismo explodindo aqui e acolá, naquele 4 de julho. Num raro momento, na segunda à noite, na conferência e conversa que marcou o lançamento de Clarice Lispector Todos os Contos (Cia das Letras), pudemos, com literatura, buscar um jeito mais franco de falar sobre opressão, patriarcado, direito à cidade, os falsos heróis de estátua, os heróis esquecidos que mereciam estátua, da submissão e dos  direitos da mulher, da chateação ferrenha do que é ser feminina, feminista e tantos sufixos. A vida de escritoras e de mulheres, mas, essencialmente de Clarice Lispector e o que seu nome, sua história, tem a dizer sobre nós, essa tessitura vital, nem sempre suave, nem sempre vivenciada com o tempo que merecem.

 
Clarice Lispector (1920-1977). Foto: New Directions Publishing Company.

Glamour e emoção

Clarice nos ratifica. Sim, você está realmente trabalhando para dar a Clarice Lispector a possibilidade de se autoafirmar como um elemento forte de identidade da cultura brasileira. E isso não é pouco. Uma autora brasileira de expressão da cultura brasileira.Todos os Contos reúne pela primeira vez em um só volume a íntegra da obra de Clarice Lispector como contista, informa a contracapa do livro, que sua versão inglesa e nascida primeira que a brasileira foi incluída na lista de melhores da livros de 2015 do New York Times. Assim escreveu o crítico Colm Tôibin: “Clarice Lispector tem a habilidade de escrever como se ninguém houvesse escrito antes. Um dos gênios ocultos do século XX, do mesmo time que Flann O´Brien, Borges e Fernando Pessoa, completamente original e brilhante, pertubardor e inquietante.” E Edmund White também escreveu: “Culta glamourosa, emotiva, Clarice Lispector é uma escritora emblemática do século XX, que pertence ao mesmo panteão de Kafka e Joyce.

”É uma redenção às mulheres. Tenho de confessar. Meu amigo Geraldo Galvão Ferraz não me perdoaria pela indiscrição de confidenciar algo que me contou somente após duas décadas de amizade e poucos anos antes de sua morte. Certa vez ele viu um editor horrível sendo grosseiro com a Clarice, que na condição de jornalista, entregava um texto, e era xingada na cena. Sim ela ganhava uns trocados para exercer o jornalismo e a crônica, com os quais pagava suas contas.

Foi um choque ouvir isso do mais discreto dos meus amigos. Eu sempre a imaginei intangível e venerada. Mas o meu amadurecer revelou que a autora que aprendi a admirar desde a adolescência havia tido uma vida de contar recursos escassos e morreu pobre num hospitál público, como bem lembrou, você, Moser, mas passou a maior parte da vida escrevendo. Nas suas pulsações, no Livro Um Sobro de Vida, ela escreveu ou ditou, não sei, você sabe mais que eu:

“Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos. De repente as coisas não precisam mais fazer sen­tido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.

[…] Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia. Quando fechardes as últi­mas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão li­vro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter re­pouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.“

Eu leio esse trecho sempre que a tristeza e a depressão se avizinham, como uma prece.

Eu gostei mesmo, meu caro, quando você conectou tudo e disse que “Clarice gostava mesmo de moda e poderia ser confundida com uma dondoca da zona sul. Ela gostava de cabelos, de dar conselhos, chegava a dizer, pelo amor de Deus não use esse tipo e tal de perfume, não vai ficar bom, escrevia a mulheres nas suas crônicas, como amiga. E eu também não sou assim (vestido) quando estou em casa. Arrumei o cabelo pra vir aqui ver vocês. Clarice dizia que escolher a própria mascara é o mais importante, ou difícil, pra uma pessoa. E estou massacrando Clarice com essa fala simples. Mas com toda essa riqueza de gênio interior que ela tinha, ela queria, sei lá, ir na padaria comprar cigarros e Coca-Cola e achava importante as pessoas terem uma aparência. Nos conselhos de crônicas de revistas femininas, ela escrevia para ajudar a mulher, mas a questão feminista é uma das menos entendidas do mundo, não só por gente que diz não sou feminista porque gosto de homem.”

 
A coletânea reúne pela primeira vez todos os contos da autora num único volume.
Transcrevi de memória esse trecho que você, Moser, falou numa noite de segunda-feira, no Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura, como bem lembrou o nome do teatro que presta homenagem a uma mulher judia. Foi extraordinário ver que o bate-papo com mediação de jornalistas da Folha de São Paulo a pretexto do lançamento de “Clarice Lispector Todos os Contos” , o primeiro que reúne todos os contos da autora, se transformou naquela epifania. E você viu que o professor da plateia disse que estava acostumado a dar aulas com livros que se esfarelam, que Clarice jamais teve no Brasil uma edição assim, de luxo, capa dura? Mas foi preciso a obra completa ter surgido primeiro lá fora, para onde você traduziu e lançou e logo Clarice figurou entre as mais vendidas no exterior.

Você sabe, nas nossas correspondências ao longo dos últimos seis anos, enxergo em você um sentido para fazer as coisas que realmente preciso fazer e escrever, me sinto menos solitária no mundo. Cuidado, com os oportunistas de plantão.Há muito deles por aqui.

Voltando à mesa de conversa do 4 de julho, após uma pergunta prosaica, se o modo de vestir na moda e o lado feminista não eram dissonantes de uma Clarice feminista (cito a pergunta de memória do jornalista e prefiro não julgar a intenção), você respondeu com a fala acima.

Americano de origem judaica, de família imigrante, com muitos anos de estudos do português, seu sotaque revela um grande apreço pelo português contemporâneo falado, inclusive as gírias. Tem frases categóricas, de muita convicção, mas logo fala, sem o menor pudor, que tem coisas que acha que está inventando. Não sei se a palavra é inventar, mas é oferecer o seu olhar para as coisas. Eu o reconheço como etnógrafo da vida do brasileiro e isso é vital para tantos brasileiros que colocam a vida para baixo.

Tapa na cara de quem ainda acha que um batom não combina com uma feminista, senti isso quando você disse. “A questão feminista quer dizer que ela (Clarice) acreditava na igualdade da mulher.”  E mais. Esse papo do que a mulher veste ou deixa de vestir, como  cuida da aparência, afirmou Moser, “políticamente tem muitíssimas expressões.” Outro trecho: “Já estou terminando a biografia da Susan Sontag e ela era uma durona assim, que todo mundo tinha medo dela, era impressionante,  e todo mundo corria dela. Ela apanhava muito por ser mulher, era criticada por ser gorda, por ter o cabelo todo errado.”

Como biógrafo da autora da criadora de Macabea, eu gostei quando você soltou o verbo. “Essas coisas nunca ninguém falou de Norman Mayler, de um autor homem. Isso se fala de mulher para deixar a mulher… to put women down (para baixo).”

Assim sem titubeios. Com seu jeito de sorrir e de falar do Brasil como sua casa, você lembrou que muitas mulheres escritoras foram alcoólatras, depressivas e suicidas ao enfrentar brutalmente a cultura do patriarcado. Compreendo quando você lamenta a curta obra e a curta vida de Ana Cristina César, que “voou feito passarinho de um edifício e nos deixou tão precocemente.” Alias, Moser, nos bairros periféricos de São Paulo são as mulheres jovens que mais dão fim às suas vidas, revelam as estatísticas.

Foi chato puxar esse pé de conversa sobre o cuidado à aparência como destaque de uma mesa que elucidou a trajetória de Clarice por meio dos seus contos. Enquanto escrevi isso, numa tarde de terça-feira num programa de TV um grupo de mulheres se degladiava depreciando o porte gordo do corpo da outra ou a estrema magreza, com falas machistas, muita carne ou muito osso. E isso ocupa tanto a cabeça de tanta gente…que a libertação do estar e ser, creio, só se dá mesmo pela escrita. Na biografia Clarice, (lê-se Clarice vírgula), que você publicou há seis anos, a gente vê que Clarice começou escrevendo para salvar a vida da mãe, para quem lia para que ela se curasse. Pouca gente sabia disso. A academia sempre omitiu a violência sofrida pela mãe e pela família judia de migrantes. Essa inteireza da biografia nos dá um retrato clariciano de mais nuances.

Assunto e tanto que você abriu caminho para falar de mulheres escritoras, dos símbolos culturais do Brasil, mas talvez nesse assunto corriqueiro esteja aí ponta do iceberg de um sufrágio sexista, o não poder ser bela e vaidosa se você segue o caminho da literatura e da ficção. A vaidade de Clarice, seu batom, seu cabelo, seu corte descortinam tudo isso. Fico pensando nisso, ainda que não me importe com isso. Justo eu, que gosto de tanto de Coco Chanel e que tive a sorte de transcender ao conceito utilitário da roupa, que enxergo nela uma poesia simples e de expressão cognitiva com o mundo.

Acabo de ler o seu prefácio. Ele acaba por nos revelar a  evolução e de como a mulher se descobre como assunto da literatura, que não tinha sido antes. Você proferiu essas palavras no 4 de julho. “A literatura foi dos homens, homens sempre escreveram. Mas as mulheres sempre ficaram silenciadas por uma série de coisas sociais e politicas em todos os países “, afirmou, sem fazer jogo de cena.

“Clarice é a primeira mulher que escreve ao longo de toda a sua própria vida e que escreve sobre a própria vida, mas também a  de uma mulher, e de qualquer mulher, e eu fiquei mais orgulhoso dela, realmente é uma contribuição a mais, não só no Brasil mas para toda a literatura mundial”. E há 15 anos você se dedica a estudar Clarice. E estuda de corpo inteiro, visitou a terra de sua família, na Ucrania, entrevistou familiares e quando vem ao Rio visita seu túmulo e, como fazem os judeus, leva uma pedra de presente, algo nada perecível. Nunca gostei de heróis que viram estátua, até porque aqui os heróis de estátua muitas foram assassinos frios. Mas o perfil de Clarice eterninado no Rio e seu olhar ao lado dela é pura brasilianismo.  

E, Moser, afinal, como disse Virginia Woolf, no ensaio publicado no livro Um Teto Todo Seu, as mulheres precisariam dar meio expediente e chegar em casa às 4 da tarde, a tempo de escrever uma poesia. A frase não é de um romance, mas de uma conferência que a autora inglesa pronunciou em 1928, para falar da mulher na literatura.

Virgina Woof, sobre a mulher, em um Teto Todo Seu

“É de se imaginar que ela seja da maior importância; na prática ela é completamente insignificante. Ela permeia a poesia de capa a capa; está sempre presente na história. Domina a vida de reis e conquistadores na ficção; na vida real, era escrava de qualquer garoto cujos pais lhe enfiassem um anel no dedo. Algumas palavras mais inspiradas, alguns pensamentos mais profundos da literatura vieram de seus lábios; na vida real, ela pouco conseguia ler, mal conseguia soletrar e era propriedade do marido.”

Parafraseando a Marina Colasanti, talvez a gente saiba, mas não devia. “No Brasil, quando se fala de Guimarães Rosa Machado de Assis, fala-se primeiro da obra, e só depois da vida do autor”, assim está no seu prefácio. E se os tempos são de feminicídio, violência contra mulher, assédio, assédios silenciosos, não reconhecimento do seu talento, ainda o que  vemos e muito nos mais diversos espaços e mesmo entre esposas de muitos intelectuais, intelectuais e políticos, Oxalá, Macabea nos redima. E que se possa falar da cultura brasileira. Um dia, meu caro, Clarice Lispector será uma cáteda, mas isso não importa. O que importa são mulheres que banquem suas vidas e ainda tenham tempo de escrever poesia. E aqui no Brasil, Moser, o pessoal tem essa mania de se autodesqualificar, e para desqualificar um homem logo se parte para desqualificar a mulher.

Aqui mais um trecho seu: “Os homens sempre escreveram. Mas as mulheres sempre ficaram licenciadas por uma série de coisas sociais e politicas em todos os países.”

***
Terciane Alves é jornalista com passagens pela iniciativa privada e atuou na coordenação do São Paulo Carinhosa. É coordenadora de Políticas Públicas do Instituto Brasiliana e assina o Blog Nossa Infância do Estadão.

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