Cemitérios com pista de corrida, tour noturno e wi-fi

“Já me chamaram de papa-defunto e de louca”, conta a auxiliar de enfermagem Luisa Dalva, 31, sobre o hábito de correr todos os dias por entre lápides do Cemitério Vila Formosa, na zona leste.

Em menos de um mês, a maratonista conseguirá a chancela da prefeitura no seu hábito matinal: uma pista de corrida será instalada na necrópole, com cinco paradas e um quilômetro e meio de extensão.

O poder público tem um plano para os 22 cemitérios municipais paulistanos. “Torná-los mais parecidos com parques do que com lugares mortos, sempre respeitando a memória de quem está enterrado”, diz a chefe do Serviço Funerário, Lúcia Salles França Pinto.

As mudanças para tornar as áreas verdes lugares mais vivos incluem tours noturnos, o estímulo a encenação de peças e de concertos e introduzir passeios autoguiados, além douso de cães de guarda nos cemitérios da Consolação e do Araçá e da promessa de implantação de internet sem fio em todas as necrópoles da capital paulista.

Um gesto que simboliza essas intenções poderá ser visto durante esta semana no Jardim São Luís, perto do Capão Redondo, na zona sul. O muro do cemitério local já começou a ruir e, no lugar da parede de concreto, 700 metros de grades retiradas de monumentos como os Arcos do Jânio, na região central, farão a delimitação entre a rua e o mortuário.

A prefeitura afirma que a visão desobstruída do terreno inibe a ocupação para uso ou tráfico de drogas. “Muro não segura alma penada”, diz França Pinto, do Serviço Funerário.

A empregada doméstica Evelyse Santos, 33, reza para que a empreitada seja bemsucedida: “Já vi gente sendo roubada, ladrão pulando o muro do cemitério e gente fumando crack lá dentro. É triste”. 

A mudança só terá o custo da mão de obra, afirma a prefeitura. Caso dê certo no bairro, com uma das mais altas taxas de criminalidade da cidade, “a ideia é expandir essa obra para outros cemitérios, idealmente todos”, diz França Pinto. 

Enquanto isso, os três principais mortuários da cidade, na região central, passarão por ações para trazer mais gente muro adentro. 

As visitas guiadas ao cemitério da Consolação, onde estão enterrados artistas como Mário de Andrade e Paulo Goulart, vão se tornar mais frequentes a partir de setembro. Alunos da PUC paulistana serão treinados para fazer os passeios com grupos. As visitas matutinas também ocorrerão em mais dias da semana – atualmente se restringem a terças e sextas-feiras.

Perder o medo do escuro também faz parte da nova diretriz. Haverá visitas noturnas quinzenais ao cemitério onde descansam em paz Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. 

O ex-coveiro Francivaldo Gomes, o Popó, que há 13 anos é o único guia do Consolação, se diz “muito animado” com a chegada dos colegas universitários. “Quanto mais, melhor!” 

O cemitério São Paulo, em Pinheiros, terá um sistema de autovisitação a partir de 15 de julho. “QR codes”, espécie de código de barra que pode ser lido por um celular e mostra informações sobre mortos famosos. 

Serão 129 placas no total, sendo 13 de túmulos de políticos, 37 de personalidades públicas e intelectuais e as 79 restantes para arte tumular de artistas como Victor Brecheret e Aldo Bonadei. A tecnologia já está disponível no Araçá e no Consolação.

Fotos proibidas

A sãopaulo testou os códigos distribuídos pelo cemitério da Consolação. Com exceção de um cuja tinta parece já ter desbotado, todos os demais funcionaram. 

Mas alguns empecilhos ainda dificultam as visitas ao Consolação, como a necessidade de pedir autorização por e-mail antes de fazer qualquer foto lá dentro. A proibição, sem previsão de ser suspensa, não encontra paralelo nos mais conhecidos cemitérios do mundo, como o parisiense Père Lechase ou o portenho Cementerio de la Recoleta, onde selfies e retratos são livres. 

Pelo menos outras manifestações artísticas devem ganhar mais liberdade. “Meu sonho é fazer um sarau de poesia gótica perto do túmulo do poeta Luís Gama”, diz o também poeta Silvio Almeida, 32, que vende sua arte na rua Augusta.

O desejo dele pode estar mais perto do que imagina. A peça “Para Gelar a Alma”, que encena contos de Edgar Allan Poe entre túmulos e estava prevista para até 5 de julho, teve temporada prorrogada até 2 de agosto. “Faremos mais eventos culturais nos cemitérios. Peças, saraus, concertos”, diz Lúcia França Pinto, para quem a participação do mausoléu em eventos como a Virada Cultural é “essencial”. Mas nem só de cultura é feita a política da perda. 

O Serviço Funerário reserva parte de seu orçamento de 2015, de cerca de R$ 6 milhões, para cuidar da família de quem partiu. 

O Núcleo de Pesquisa em Perdas e Luto, da USP, dará palestras para funcionários do Serviço Funerário. Não há nenhum psicólogo entre os mais de 200 funcionários do órgão. 

O primeiro servidor municipal contratado para ajudar famílias a lidar com o luto trabalharia dentro do Instituto Médico Legal, na avenida Doutor Arnaldo. Trabalharia, no condicional, porque o governo do Estado, que toca o IML, e a prefeitura não conseguem chegar a um acordo quanto a quem ocupará uma sala de apoio, reformada nos últimos meses com dinheiro municipal. 

Questionada sobre o imbróglio, a Secretaria de Segurança Pública responde em nota: “O IML irá implantar serviços de atendimento às famílias das vítimas, inclusive com atendimento psicológico a ser realizado por meio de convênio com universidades públicas.” E afirma que “não haverá convênio” com a prefeitura. Tem desavença que só se resolve em funeral.

Por Chico Felitti colunista da sãopaulo na Folha de S.Paulo.

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