Antes da pandemia, São Paulo estava sendo fiel à descrição de a cidade mais barulhenta do mundo. Em alguns bairros, como em Pinheiros, há uma miríade de barulhos que chovem sobre o cotidiano. A gente até acha que se acostuma, mas não acostuma de verdade, quase como se esperássemos a próxima buzina, o próximo alarme (“este veículo está sendo roubado), o próximo avião.
A cacofonia começa com os primeiros ônibus às quatro e meia da manhã, passa pelo bate-estaca da obra de mais um novo prédio, as motos, os caminhões de todos os tipos e tamanhos, e à noite, os bares, a música, os gritos de madrugada. Sempre tem alguém que grita na madrugada, às vezes é alegria pura que precisa ser compartilhada com quem dorme, às vezes é briga mesmo, com uma batida de porta ou uma garrafa que se quebra. Para quem acorda de repente, o sono volta mas os sonhos se desvanecem.
Nesses dias de pandemia, em que a metade mais barulhenta da cidade está em casa, os decibéis baixaram logaritmicamente. Há menos vôos, carros, bares, música e gritos. As motos continuam circulando – até aumentaram – mas o delivery tem um pico no início da noite e depois vai minguando até que acaba de vez.
É nessa hora que surge a surpresa: sinos! Nunca tinha ouvido os sinos da igreja de Pinheiros, mas eles saúdam com alegria inesperada as horas cheias.
Por algum processo físico ou sensorial, o sino não é interpretado como barulho pelo ouvido. É música, e faz desencadear uma nostalgia proustiana que me leva até uma cidade do interior.
Essa cidade tem uma pracinha na frente da igreja, com uma fonte luminosa e um coreto recém-pintado. Os jardins têm roseiras aparadas e árvores de pitanga, manga e limão, onde fazem ninhos uns sabiás. Mães e avós sentam nos bancos que têm o patrocínio do açougue, da mercearia e da funerária. Os homens se encontram para jogar o último dominó ou para contar casos. Crianças correm num canto, enquanto os adolescentes compram pastel no trailer e caminham ao redor da praça. Meninos e meninas andam em sentidos opostos, encontrando-se a cada volta e trocando olhares.
O fim do badalar do sino decreta o fim do devaneio e traz uma rara calma e um sono invencível.
Mais tarde, o sonho vem a cores, nítido. É uma casa silenciosa, de paredes grossas, onde brilha uma luz fraquinha de um abajur. Ao fundo, duas vozes familiares, um pai e uma mãe, conversam baixinho, bem baixinho, garantindo ao menino que dorme que, naquela noite calma, tudo vai ficar bem.
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Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. Artigo publicado originalmente no seu blog Caminhadas Urbanas.