‘Como el musguito en la piedra’

Tenho o privilégio de não precisar fazer grandes, obrigatórios e cotidianos deslocamentos pela cidade – meu escritório fica dentro de minha casa. É claro que saio bastante, seja por motivos profissionais ou pessoais, mas boa parte das vezes usufruindo da liberdade de ter escolhido locais, percursos e horários que de alguma forma ajudaram a minimizar ou qualificar esse meu tempo de deslocamento. Gosto muito de caminhar, e sempre que possível essa é minha primeira escolha. Às vezes uso o metrô, quase nunca o ônibus. E quando o automóvel é inevitável, meus critérios para escolha do trajeto são o da beleza ou da memória afetiva, conforme já relatei anteriormente em outra crônica. Mas é caminhando que experimento de maneira mais intensa um de meus grandes prazeres: observar.

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Foto: Ernesto Rodrigues / AE.

Estamos no início de dezembro e já observo em São Paulo a histeria coletiva que antecede as festas de final de ano. Pessoas cansadas e impacientes, trânsito ainda mais caótico, ruas, lojas, restaurantes e bares todos lotados, vitrines piscando, crianças pedindo, ambulantes se multiplicando. O clima emocional é um espelho do meteorológico: instável e sufocante, com uma energia contida à espera da eclosão – de repente, raios, trovões, gritos, chuvas, brigas, choros. Confusão e celebração. Sirenes e jingle bells.  

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Saindo hoje de uma reunião com um cliente, decidi caminhar até uma agência dos Correios distante dali cerca de 1,5km. Seria minha terceira tentativa de postar um documento que só poderia chegar ao destinatário por meio de Carta Registrada. Nas vezes anteriores tinha ido a uma agência próxima à minha casa, onde filas inesperadas de cinquenta e tantas pessoas me haviam feito desistir da tarefa. Mas hoje estava preparada: disponibilidade na agenda, tênis nos pés, livro e bloco de anotações na bolsa, foco na cabeça e paciência no coração. Fui.

Foto: Correios / Divulgação.

Depois de agradáveis quinze minutos por ruas onde não caminhava há tempos, cheguei à tal agência e peguei minha senha de atendimento: 0139. Olhei o painel: 0104, guichê 02. Trinta e quatro pessoas na minha frente. O número era menor do que nas tentativas anteriores, e eu já não estava tão surpresa – resolvi aguardar. Sem qualquer assento disponível, escolhi um canto onde fosse possível algum apoio, abri meu livro e comecei a espera. De vez em quando, meus olhos saíam das páginas e percorriam o salão, cada vez mais cheio. No painel, 0104, guichê 02. Dez minutos depois, 0104, guichê 02. Quinze minutos depois, 0104, guichê 02. Foi quando ouvi uma senhora ao celular, perto de mim: “… estou aqui no correio da Clodomiro… vai demorar, o sistema caiu já tem uns quarenta minutos…”. Trinta e quatro na minha frente e sem sistema? Comecei a fazer cálculos mentais: se o sistema voltar até tal hora, consigo ser atendida à tal hora, levo mais tanto para voltar… 

Alguém que estava sentado perto de mim, creio que tendo ouvido a mesma conversa, levantou-se e foi embora. Sentei. Três minutos e duas novas desistências depois, um rapaz com senha em uma mão, capacete na outra e um lindo sorriso no rosto sentou-se a meu lado:

– Que número é o seu?

– 0139. E o seu?

– 0116. Quer trocar?

– Como???

Um som digital cortou nossa conversa, o painel se movimentou: 0105, guichê 04. O sistema voltou! 0106, guichê 03. 

– Tá a maior chuva lá fora, vou ter que esperar mesmo, senão tenho que pôr bota, capa…

– Mas a fila começou a andar, daqui a pouco já é você!

– Tem problema não. Vai lá. Não gosto de dirigir na chuva, vou esperar a água abaixar. Tranquilo.

– Tem certeza?

– Claro, moça!

Trocamos as senhas, e também impressões sobre filas, chuva, trabalho, férias, trânsito… oito ou dez minutos deliciosamente surpreendentes até o 0116 aparecer no painel. 

– Tchau, Roberto, muito obrigada de novo, você é muito gentil!

– Que nada, vai com Deus. E bom Natal pra você e pra toda sua família!

Pouco depois do meu atendimento, a chuva parou e comecei meu caminho de volta, ouvindo buzinas, observando motoristas tensos e apressados, e refletindo sobre como nessa cidade árdua, caótica, impessoal, por vezes agressiva, resistem os gestos gentis, as pessoas doces e os acontecimentos mágicos. Lembrei da imagem do musgo que brota por entre as pedras de um muro, e se mantém suave em contraponto à dureza que o envolve. E senti uma pontinha de orgulho quando pensei que, não fosse meu prazer em caminhar por esta cidade, jamais teria tido o privilégio daquele delicado encontro.

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Valéria Midena, arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção, escreve quinzenalmente no São Paulo São. Ela é autora e editora do site SobreTodasAsCoisas.

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