Como ‘fazer’ cidade considerando as diferenças de gênero?

No entanto, o excesso de burocracia, indolência e falta de vontade tem deixado as mudanças físicas da cidade em uma evidente defasagem, distanciadas das mudanças ideológicas, deixando-as, muitas vezes, no discurso do como deveria ser.

No desenho urbano a perspectiva de gênero parece tema de outros domínios ou, ao menos, um aspecto ainda incipiente. Pensa-se que as cidades oferecem igualdade de oportunidades, partindo do pressuposto que são espaços neutros no que se refere à equidade de gênero. Mas não é assim, pois a urbe é cenário constante das diferenças.

As possibilidades de “viver a cidade” são menores para alguns grupos sociais como as mulheres, onde os recursos urbanos não são suficientes ou não consideram suas particularidades. A sobreposição de papéis da mulher; mãe, dona de casa, trabalhadora, etc, requerem determinadas condições espaciais para o vínculo e uso do entorno: infraestrutura viária, redes de serviços, espaços públicos e equipamentos que impactam no acesso aos serviços públicos urbanos, a participação cidadã ativa da mulher e sua percepção de segurança, principalmente. É na consideração desses fatores, no ignorar ou reconhecer as diferenças, onde o discurso é esquecido ou se torna realidade.

Quando adentramos no fenômeno da incorporação das mulheres no público, especialmente no que diz respeito à sua participação no mercado de trabalho e política, há uma defasagem entre o discurso e as reais oportunidades de inclusão e aceitação, produzindo-se uma assincronia entre o dever ser e o poder ser (Molina, 2006:190).

Esta lacuna se experimenta em muitos aspectos, mas o interesse aqui, para mostrar que é também uma expressão dos processos urbanos, posto que as relações entre espaço, gênero e trabalho são assíncronas nas cidades. Elas têm gestado os grandes discursos emancipatórios, no entanto, não tem sido assim quanto às oportunidades para alcançá-los. Embora as mudanças tenham ocorrido, elas não são o suficiente para falar de uma incorporação das mulheres na sociedade. Há diferenças salariais, jurídicas, educacionais e, claro, territoriais, entre outras (CASEN 2015).

"Plaza de Bolsillo" de Santiago (Chile) sobre um lugar abandonado por 40 anos. Foto: Plataforma Urbana.

As dinâmicas da globalização e o trânsito das sociedades industriais a cidades de serviços trouxeram consequências diretas de desigualdades para a vida das mulheres, que indistintamente se viram instadas, convidadas, coagidas, seduzidas ou atraídas a trabalharem. No entanto, os espaços de trabalho, as distâncias e os circuitos em que se deslocam não foram alteradas para isso.

Aspectos concretos de desigualdade são observados no planejamento dos transportes urbanos e as possibilidades para seu uso, pois geralmente os horários de trabalho de muitas mulheres são parciais e se combinam com outras tarefas como deslocar as crianças, alimentá-las e cuidar ou acudir se elas ou outros familiares estão doentes. Outro exemplo é o acesso à habitação, onde são as mulheres as que mais padecem com a localização destas e a forma em que se organizam os bairros, gerando-se falta de sentido de pertencimento e insegurança, que somado à escassa, difícil e custosa conectividade as levam a se auto-excluírem e centrarem-se nas suas tarefas domésticas / familiares, o que as restringe de suas potencialidades e projeções. Um número considerável de mulheres se vêem obrigadas a conjugar as exigências dos papéis produtivos e reprodutivos em um mesmo espaço, limitando com isso suas oportunidades não somente no campo laboral, mas também em termos de autonomia, participação coletiva e organização social.

Os altos graus de segregação nas cidades refletem-se na “precariedade das condições habitacionais, falta de segurança, deterioração da qualidade ambiental, provisão insuficiente de equipamentos e serviços”, sendo as mulheres quem mais devem lidar com a busca de ajustes para enfrentar essas manifestações da desigualdade (Saborido, 199:3).

A transformação de vazios urbanos de Zaragoza em verdadeiros espaços públicos. Foto Estudio Gravalos DiMonte

“Fazer cidade” requer uma adequada gestão urbana, ou seja, que exista a ativa participação de todos os seus habitantes e assegurar pelo cuidado e geração de espaços para o desenvolvimento de suas potencialidades, não somente em termos produtivos, mas também em âmbitos de recreação e cultura. A que se refere a gênero, existe um déficit no desenho e implementação de políticas urbanas que aportem a igualdade de oportunidade, nas condições de segurança (cuidados) ou no desenvolvimento de potencialidades para os que vivem na cidade. Há desconexão entre a realidade, interesse e necessidades específicas, primando pressupostos homogeneizantes ao formular projetos ou programas urbanos, ou que desconheçam a diversidade.

Devemos pensar em cidades inclusivas, onde a dimensão de gênero é um componente de vital importância nas políticas urbanas e no planejamento delas, o que contribui para que sejam mais sustentáveis, justas e equitativas. Lamentavelmente, isso converte-se em um paradoxo quando estamos conscientes de que as cidades são cada vez menos planejadas para quem deve fazê-lo, e o mercado é quem as modela. As cidades crescem em extensão, densidade e altura, adquirindo seu próprio aspecto e forma, o que não responde ao imaginário e bem-estar coletivo, ou às necessidades de quem a habita. Está aí o desafio.

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Este artigo foi publicado originalmente na XIII edição da publicação ArquitecturaAhora, dedicada à discussão sobre Gênero, Mulher e Cidade. 

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