Como uma cervejaria influenciou o urbanismo de São Paulo

Por Edison Veiga.

“Meu desafio foi entender a participação da companhia no processo de urbanização de São Paulo”, resume Sousa. Historiador formado pela Universidade Federal de São Paulo, Diógenes Sousa debruçou-se sobre esse material para sua dissertação de mestrado, defendida na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Agora, ele se aprofunda no urbanismo em seu doutorado, em andamento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Entre os equipamentos urbanos criados pela Antarctica com o intuito da venda de suas bebidas estão o Parque Antarctica, o Cine Centrale o Cassino Antarctica. Foto: Acervo Diógenes Souza.

A Antarctica foi criada em 1885. Originalmente, era um abatedouro no bairro da Água Branca. Que também contava com uma fábrica de gelo. Em 1888, Louis Bucher, filho de cervejeiros alemães, entra no negócio e começa a fabricar cerveja de forma mais industrial – ele já tinha uma pequena fábrica anteriormente. Formalmente, a Companhia Antarctica Paulista é fundada em 1891.

“Entre os equipamentos urbanos criados pela Antarctica com o intuito da venda de suas bebidas estão o Parque Antarctica, o Cine Central, o Cassino Antarctica, o Theatro Polytheama, o Cine Bijou e o Bosque da Saúde. Os equipamentos voltados à educação e à saúde são o Hospital Santa Helena e o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, a Escola Vocacional Antarctica e a Escola Técnica Antarctica, além da Fundação Helena Zerrenner”, cita o historiador.

Mapa com os equipamentos públicos construídos pela Antarctica em São Paulo.

Ou seja: a empresa acabou influenciando o desenvolvimento urbano de São Paulo ao criar “estruturas-âncora”, fosse para atender aos funcionários de sua fábrica e a comunidade do entorno – como familiares e imigrantes -, no caso de equipamentos de educação e saúde, fosse na criação de locais de entretenimento e lazer, justamente para alavancar o consumo da bebida na cidade então muito provinciana.

Telonas

Foi nesse contexto que São Paulo ganhou, por exemplo, sua primeira sala de cinema. Trata-se do Bijou Theatre, que abriu suas portas em 1907, em um imóvel que ficava na então rua São João – rebatizada como avenida apenas na década seguinte. Conforme o historiador José Inacio de Melo Souza relata no livro Salas de cinema e história urbana de São Paulo (1895-1930), o empreendimento era dos exibidores Francisco Serrador e Antonio Gadotti, mas ficava em um terreno de propriedade da Companhia Antarctica – arrendado para este fim.

Cine Bijou Theatre, primeiro cinema de São Paulo, na rua São João, início do século 20. Foto: Arquivo / SMC.
Cine Bijou Theatre, primeiro cinema de São Paulo, na rua São João, início do século 20. Foto: Arquivo / SMC.

O Bijou não foi o local da primeira exibição da sétima arte em São Paulo, mas antes dele os filminhos eram passados em espaços improvisados e, muitas vezes, itinerantes. Ele representa, portanto, um marco: foi o primeiro local fixo como cinema, o início do cinema como negócio na cidade.

Conforme o jornal O Estado de S. Paulo registrou em novembro de 1907, o galpão do Bijou, antes um teatro, foi “completa e luxuosamente remodelado” para a inauguração do cinema. A imprensa da época dizia que o ponto rapidamente se tornaria frequência obrigatória do “mundo smart” – sim, assim eram chamados os descolados e antenados da época.

O Bijou tinha sessões durante a semana às 18h30. Aos domingos, os filmes eram exibidos às 13h30 e às 19h30. Eram curtos, de pouco mais de 10 minutos, e cada sessão incluía, em média, cinco filmes. Mudos, tinham o acompanhamento de um sexteto. Dois terços da produção era europeia e o restante vinha dos Estados Unidos. Entre os títulos que estrearam ali estão ‘A Dama das Camélias’, ‘O Fim do Mundo’, ‘Macbeth’ e ‘Sevilha’.

No estabelecimento da rua São João havia também um botequim sofisticado para a época. Ponto, portanto, para as vendas da cervejaria. E aqui cabe uma curiosidade: Serrador, o empresário que tocava o negócio, era desses visionários. Atribui-se a ele não só a primazia de ter transformado a sétima arte em algo sério na cidade, mas também à popularização do cachorro-quente no Brasil, porque ele importou a ideia dos Estados Unidos e passou a oferecer o lanche aos frequentadores de seu espaço.

Parque Antarctica

Certamente, o empreendimento que mais alavancou o desenvolvimento urbano de São Paulo foi um imenso parque construído para o lazer na então pouquíssimo adensada região da Água Branca, na zona oeste da cidade. O Parque Antarctica, com seus 300 mil metros quadrados, era um espaço de entretenimento aberto ao público.

Parque Antarctica, cerca de 1910. Foto: Acervo / Rotischild & Co.
Parque Antarctica, cerca de 1910. Foto: Acervo / Rotischild & Co.

Em seu livro Anarquistas, Graças a Deus, a escritora e memorialista Zélia Gattai (1916-2008) conta que, quando criança, frequentava o local com sua família. E ela dá uma saborosa descrição de como era o parque. “Grande programa, o maior, o melhor de todos para mim – a ida ao Parque Antarctica, na Água Branca”, relata ela, no livro. “Ai, que frio no estômago ao subir na roda gigante! E o carrossel? Era por acaso pouco emocionante galar nos coloridos cavalos de pau? Chegava a sentir vertigem daquele sobe-e-desce dos cavalinho rodando, rodando… Havia um hábito intolerável dos adultos: plantavam-se de pé, cada qual ao lado de uma criança. Eu detestava esta proteção, preferia andar solta, galopar em liberdade.”

Ela prossegue se lembrando de trenzinhos “puxados a burro, circulando pelo parque todo”, “carrocinhas arrastadas por bodes e carneiros” e “pirulitos de todos os formatos e cores”. “As bolas de ar, subindo lá no céu, presos por um barbante? O algodão de açúcar? As gasosas e os sanduíches? O Parque era divino!”

Sim, as gasosas. No relato da escritora está uma das motivações da empresa para criar o local: a venda de refrigerantes. A outra era o consumo de cerveja, é claro, por parte dos adultos.

Imagem: Acervo / Diógenes Souza.
Imagem: Acervo / Diógenes Souza.

O Parque Antarctica já contava com um campo de futebol. E o local entrou para a história também por conta disso. Em 3 de maio de 1902, nesse campo o time do Mackenzie venceu o Germânia (atual Esporte Clube Pinheiros) por 2 a 1. A partida, válida pelo Campeonato Paulista, foi o primeiro jogo de futebol válido por competição oficial do Brasil. Por falar em futebol, até recentemente, Parque Antarctica era um dos nomes mais comuns utilizados pela população para se referir ao estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras. Trata-se exatamente do mesmo local.

Em 1917, o então clube Palestra Itália passou a utilizar o campo da Companhia Antarctica para mandar seus jogos, alugando o espaço. Três anos depois, a agremiação esportiva comprou o terreno. Em 1933, ali, seria erguido um novo estádio, o Palestra Itália. Mas o apelido – Parque Antarctica – resistiu ao tempo. O estádio seria demolido em 2011, dando lugar ao moderno Allianz Parque, onde o Palmeiras manda seus jogos atualmente, no mesmo endereço.

“É interessante notar esse percurso”, aponta Sousa. “O Parque Antarctica foi criado pela companhia primeiro para usufruto de seus funcionários, do pessoal da fábrica. Depois, a fábrica amplia esses acesso, abre para a população em geral. A essa altura, a região já se urbanizava em torno do parque, porque havia uma ânsia por espaços de entretenimento na cidade.”

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Imagem: Acervo / Diógenes Souza.
Imagem: Acervo / Diógenes Souza.

Outro aspecto interessante da pesquisa de Sousa são os anúncios antigos dos produtos da cervejaria. Ao contrário de hoje em dia, quando mulheres seminuas são utilizadas para turbinar as vendas, era comum que o discurso apelasse para supostas propriedades medicinais da bebida. Não raras vezes, a ilustração trazia crianças oferecendo a cerveja.

“Também havia a crença de que a cerveja preta, por exemplo, ajudasse mulheres lactantes a produzirem mais leite, ou um leite dito ‘mais forte””, lembra o historiador. Em conversas com antigos funcionários da companhia, ele apurou que quando a mulher de um operário ficava grávida, era comum que este ganhasse uma caixa de cerveja escura como homenagem. “E quando a criança nascia, o presente era uma caixa de refrigerante”, diz ele. Impensável nos tempos de hoje, quando o consumo de refrigerantes por crianças pequenas é visto com péssimos olhos.

Em suas pesquisas, Sousa encontrou um paralelo na cidade de Quilmes, na região de Buenos Aires. Lá, a cervejaria homônima também criou um complexo para atender aos funcionários e, na sequência, à comunidade – com igreja, escola e espaços de lazer.

Público x Privado

Vista parcial da Vila Maria Zélia, em 1919; a construção teve início em 1912. Foto: Arquivo.
Vista parcial da Vila Maria Zélia, em 1919; a construção teve início em 1912. Foto: Arquivo.

Os equipamentos construídos pela Antarctica em São Paulo, como aponta o historiador e urbanista, mostram que a interferência da iniciativa privada dentro de uma questão pública, no caso o planejamento urbano, já era presente em São Paulo desde o fim do século 19. “Devo abordar este tema com mais profundidade em meu doutorado”, adianta o pesquisador. “Mas ressalto que outras empresas adotaram o mesmo modus operandi. É o caso da Vila Maria Zélia, fruto da Companhia Nacional de Tecidos de Juta, de Jorge Street, um exemplo que me vem à mente.”

“Penso que os equipamentos urbanos criados pela Antarctica respondiam a uma lógica de oferta e demanda”, analisa. “A fábrica tinha a necessidade de popularizar seus produtos e acabou aproveitando o fato de uma cidade que estava passando por uma processo que ficou conhecido como ‘segunda formação’, tamanhas foram as transformações urbanísticas do período”, prossegue Sousa. “Minha pesquisa não tem um cunho propagandístico nem tampouco de história institucional. Trata-se de um objeto de estudo que, ao fim e ao cabo, acabou por construir equipamentos urbanos que fizeram parte do cotidiano paulistano desde a passagem do século 19 para o 20.”

Anos 1930 – Frota de caminhões da Antarctica diante da fábrica na Móoca. Foto: São Paulo Antiga.

O historiador não acredita, entretanto, que tais intervenções corriam à revelia. O município passava por processos de produção de seus códigos regras urbanas e, como tal, começava a regular tais interferências. “Em minha opinião, aliás, a responsabilidade do planejamento urbano deveria ser da iniciativa pública”, diz Sousa.

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Via BBC Brasil. Edição: São Paulo São.

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