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A alma imoral
Clarice Niskier em "A alma imoral" Foto: divulgação.“Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Esse olhar é o da alma.”
Assisti pela primeira vez à peça ‘A alma imoral’ em 2008, e desde então já a revi outras duas vezes. Nas três ocasiões, no entanto, pareceu-me estar vendo o belíssimo e impactante monólogo pela primeira vez. A adaptação teatral elaborada e interpretada (de forma elegante e sensível) por Clarice Niskier a partir do livro homônimo do rabino Nilton Bonder traz inúmeras camadas de reflexões e de sentimentos, nos quais podemos prazerosamente nos aprofundar e nos perder inúmeras vezes, sempre alcançando novas descobertas.
Partindo do conceito de que, por sua própria essência, a alma humana é transgressora, o texto confunde, desconstrói e reconstrói visões milenares sobre o que sejam corpo e alma, certo e errado, obediência e desobediência, traidor e traído. Bonder coloca a tomada de consciência do ser humano sobre sua própria existência como a origem do corpo moral, que passa a ser o guardião dos costumes, da conformidade e da adaptação – o mantenedor das tradições do passado, que por meio delas colabora para a reprodução da espécie. Já a alma – que carrega em si a rebeldia e a capacidade da mutação – é aquela que possibilita pensamentos e condutas que rompem com essa moral estabelecida, colaborando assim para evolução dessa espécie. Para ele, é a tensão gerada por essas duas naturezas conflitantes e interdependentes, e o diálogo que se constrói entre essas forças – a conservadora e a transgressora – que permite ao homem transcender a si mesmo.
“Não há tradição sem traição. E não há traição sem tradição.” Basta olhar para a história da humanidade para constatarmos, nas mais diversas formas da expressão humana, a beleza e a verdade dessa afirmação: de Michelangelo a Picasso, de Beethoven a Stockhausen, de Isadora Duncan a Pina Bausch, de Brunelleschi a Frank Gehry, de Shakespeare a Guimarães Rosa… a evolução humana depende fundamentalmente de atos que, pela ótica dos costumes e da tradição, são vistos como traições. Mas verdadeira traição seria não dar voz a nossas almas transgressoras, pois são elas que nos permitem o prazer e a evolução em nossa existência.
Depois de uma brilhante carreira por todo Brasil, como um presente para nossa cidade a peça voltou a São Paulo e fica em cartaz no Teatro Eva Herz até o próximo dia 8 de dezembro. Talvez nos encontremos por lá!
Serviço
Sobre a peça: www.almaimoral.com
Texto: Adaptação de Clarice Niskier do livro “A Alma Imoral”, de Nilton Bonder
Ingressos: www.teatroevaherz.com.br/teatro/
Livro ‘A alma imoral’, Nilton Bonder, 1998, Ed. Rocco.
Quinta às 18h, Quinta e Sexta às 21h.
Local: Teatro Eva Herz - Último andar da livraria Cultura no Conjunto Nacional – Av. Paulista, 2073 – Bela Vista – São Paulo.
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Valéria Midena, arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção, escreve quinzenalmente no São Paulo São. Ela é autora e editora do site SobreTodasAsCoisas e sócia do MaturityNow. *Texto editado e atualizado, a partir do original publicado no blog SobreTodasAsCoisas.