Discoteca pública criada por Mário de Andrade completa 80 anos e ganha portal

Quando Mário de Andrade foi convidado para fundar o Departamento de Cultura de São Paulo, em 1935, um de seus primeiros projetos foi o de uma discoteca pública, onde seria mantido o acervo de uma das instituições que sonhava criar: uma rádio-escola. “As irradiações musicais vivem grandemente do emprego do disco”, escreveu o modernista em ofício ao então prefeito, Fábio Prado, pedindo orçamento para comprar álbuns de “música erudita nacional”, “música popular nacional”, “composição estrangeira erudita”, “música popular estrangeira” e outros “de caráter científico, documentário ou didático”.

A rádio-escola nunca saiu da papel, mas a discoteca se tornou um dos legados duradouros do período de Mário como gestor público. Hoje vinculada ao Centro Cultural São Paulo (CCSP), a Discoteca Oneyda Alvarenga — batizada com o nome da discípula e amiga de Mário que administrou a instituição desde o início até se aposentar, em 1968 — completa 80 anos com um acervo valioso. São cerca de 72 mil discos (45 mil de 78 rotações e 27 mil LPs), 62 mil partituras e 5 mil periódicos relacionados à música, além do material coletado pela Missão de Pesquisas Folclóricas, coordenada por Mário em 1938.

O aniversário está sendo celebrado este mês com o lançamento de um portal e uma série de eventos, como debates, shows e a exposição “Discoteca 80: um projeto modernista”, com fotos, documentos, objetos de época e gravações. O objetivo é apresentar a um público mais amplo o trabalho da instituição, que atualmente recebe cerca de 1.500 visitantes por mês.

— Recebemos desde pesquisadores e estudantes de música a produtores e ouvintes que vêm por puro lazer. Costumo dizer que atendemos do maestro ao morador de rua — diz Jéssica Barreto, coordenadora da Discoteca Oneyda Alvarenga.

Em tempos de streaming e downloads, quando as “irradiações musicais” já não dependem tanto do “emprego do disco”, como escreveu Mário, a discoteca busca novas formas de difundir seu acervo. Recém-inaugurado, o portal será alimentado com itens da coleção e vídeos e podcasts criados a partir dela. Por enquanto, além de informações históricas, há uma pequena amostra da variedade do acervo, de Elis Regina e Bob Dylan a raridades como “Jorginho do sertão”, primeira canção sertaneja gravada no Brasil, em 1929, pela dupla Mandi e Sorocabinha.

No site há também programas produzidos pela instituição, como a série “Crônica de toca-discos”, em que artistas, críticos e produtores são convidados a explorar o acervo da discoteca. A sambista Fabiana Cozza escolheu de Edith Piaf a Dorival Caymmi. Enquanto ouvia e comentava faixas de Paulo Vanzolini, Clara Nunes e Jacob do Bandolim, o rapper Emicida lembrou um verso de uma de suas músicas: “nossos livros de história foram discos”.

— Uma das intenções de Mário era dar subsídios para compositores brasileiros conhecerem a música feita aqui e no exterior. Queremos continuar a difundir esse acervo para artistas e ouvintes em geral. Muita coisa que temos aqui não está disponível na internet. Nosso objetivo é fazer da discoteca um ponto de encontro para quem quer ouvir e discutir música — diz Jéssica, lembrando que a maior parte do acervo está digitalizada e pode ser consultada gratuitamente.

No último sábado, o aniversário da discoteca foi comemorado com uma “roda de escuta”, bate-papo em torno de discos do acervo. Nos anos 1930, Mário e Oneyda promoviam eventos semelhantes, exemplo da concepção ampla que o modernista tinha da gestão cultural. Essa concepção está exposta no recém-lançado “Me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura” (Imprensa Oficial de São Paulo), organizado por Carlos Augusto Calil e Flávio Rodrigo Penteado, coletânea de documentos oficiais produzidos pelo escritor enquanto dirigiu o departamento, entre 1935 e 1938.

Os documentos mostram Mário se debatendo com o que chamava de “espessa goma da burocracia” em sua luta para implantar projetos ousados, como a Missão de 1938, que percorreu estados do Norte e Nordeste registrando danças, cantos e rituais. As gravações da Missão hoje fazem parte do acervo da discoteca, assim como documentos de outros projetos criados por Mário, como a Sociedade de Etnografia e Folclore, que teve colaboração do casal de antropólogos Claude Lévi-Strauss e Dina Dreyfus, e o Arquivo da Palavra, registro sonoro do modo de falar em várias regiões do país.

— Mário tinha uma visão inovadora para a época sobre o que hoje chamamos de “patrimônio imaterial”. Na administração dele, a cultura não era entendida em sentido estrito. Estava ligada à recreação, à assistência social, ao meio ambiente, ao turismo, a tudo que permeia a atividade humana e pode ser relacionado à ideia de cultura — diz Carlos Augusto Calil, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, que já dirigiu o CCSP e a secretaria de Cultura de São Paulo.

A sobrevivência dos frutos desse trabalho deve muito a Oneyda Alvarenga. Antes de morrer, em 1945, Mário deixou uma carta em que pedia a ela que desse continuidade a suas pesquisas sobre cultura popular. Ela catalogou o acervo da Missão, a partir do qual lançou discos da série “Registros sonoros do folclore musical brasileiro”, e organizou livros póstumos de Mário sobre o assunto, como “Danças dramáticas do Brasil” (1959) e “Os cocos” (1984).

— Mais do que criar um acervo, Mário e Oneyda queriam que ele chegasse às pessoas. Era um grande projeto público de musicalização. E é importante lembrar que, sem o trabalho dela, a discoteca não existiria — diz Flávia Camargo Toni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que colaborou com Oneyda, morta em 1984, na organização de um projeto inacabado de Mário, o “Dicionário musical brasileiro”, lançado em 1982.

Guilherme Freitas em O Globo.

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