É português mesmo?

O “brasileiro” é bem compreendido por aqui, graças principalmente às nossas novelas e músicas, que há muito tempo fazem parte do repertório dos portugueses. Curiosamente, há expressões faladas pelos mais jovens que já são verdadeiros “brasileirismos”, graças, por exemplo, a Anitta, Ludmilla, Nego do Borel… Uma amiga portuguesa chegou a me dizer que já tem dúvida se algumas palavras ou expressões que fala são genuinamente portuguesas ou fazem parte da invasão do nosso “brasileiro”. Claro que tem o nosso gerúndio e o nosso “6” que é meia. Esses ainda são só nossos. Mas se para eles é moleza nos entender, o contrário não é tão verdade assim. Ó, pá, se calhar, parece até que estamos falando uma outra língua. Sabe o que é um dióspiro ou um autoclismo? Um pouco da nossa rotina por aqui talvez ajude a entender o que estou dizendo, ou melhor, a perceber o que estou a dizer…

Acordamos e separo a minha camisola e a calça de ganga, pego a sapatilha no arrumo. Minha mulher, claro, veste uma cueca limpa. Chego na casa de banho e já lembro do problema no autoclismo. Sanita não pode ficar daquele jeito. Aliás, o candeeiro também está com uma lâmpada fundida. Já sei que será um dia longo. Fogo! Mas nada como um bom duche para começar. Putz, deixei a toalha no estendal… Dia de sol muito bonito. Praia? Separa o fato de banho e a cueca de biquíni, o tapa-vento, prepara o farnel. Agora é tirar o miúdo da cama e partir para o pequeno-almoço. Melhor uma passada na pastelaria. Meia de leite pra mim, galão pra minha mulher, tosta mista pra todos, sumo para o pequeno.

– Bom dia, o senhor quer sumo de laranja natural ou fresco

– Com esse calor, quero gelado

– Não percebi… Achei que o senhor queria um sumo. Gelado nós não temos de laranja

Meu filho já ri de mim e fala que quer o sumo fresco. Depois me diz que deixa o gelado para a praia. Ele já fala português muito melhor que eu… Pegamos a carrinha e vemos os putos na praça perto de casa, aqueles amigos da escola. Dia de sol e a canalha está solta como pintainhos. Ele lembra de quando chegou no colégio, no meio do inverno, e não conhecia nenhuma daquelas crianças. Mas tinha a Dona Elisa cuidando dele. “João Vitor, põe o quispo que seu pai já está na porta”. Boas lembranças destes meses iniciais. Já na praia, a brincadeira é achar as palhinhas e separar para o lixo. A campanha pelo fim delas é forte por aqui. Um pouco de sol, de água bem fria e já está na hora de tomar um fino (ou vamos de príncipe?) com rissóis de bacalhau.

Compota de alperce (damasco). Foto: iStock.Meu filho, claro, lembra do gelado e também pede uns rebuçados e pastilha elástica (ou encaramos umas Bolas de Berlin?). Encontramos uma miúda amiga dele do colégio e a mãe, que pedem boleia pra ir embora. Os dois se divertem muito correndo perto das pedras. “Cuidado para não se magoar”, alertei. “Não quero passar a tarde a fazer o penso”. Encontrar a amiga nos fez lembrar do material escolar pra comprar: agrafos, agrafador, fita-cola, afias, mola de orelha, além da própria prenda de aniversário desta mesma amiguinha. Se calhar, melhor sair da praia. Uma passada rápida no multibanco para levantar dinheiro e vamos às compras. No caminho, meu filho fica feliz ao ver a professora na paragem do autocarro. Um oi de longe e seguimos.

O telemóvel toca. “Alô”… “Pai, não é assim…”. Ops, “estou sim!”… Era o senhor que vai fazer a instalação da TV em casa. Perguntou o tamanho do ecrã e se eu tinha um berbequim… Desta vez, nem o meu portuguesinho conseguiu ajudar. Berbequim? Fiz de conta que a ligação estava ruim. “Não percebi, senhor Antônio. Falamos melhor amanhã… Carregue no botão quando chegar e eu abro para o senhor”.

Material escolar resolvido, partimos para o supermercado. Está fácil. Quase a mesma coisa que temos no Brasil. A lista nem é tão grande: dióspiro, alperce, ananás, nabiças, pimento, grelos, courgette, clementina, lima, limão (não, limão não é o nosso limão e lima não é a nossa lima), bifanas, pojadouro, cachaço, amêijoa, queijo flamengo, creme para barrar, esparguete, lixivia, lava-loiça. Ah, não podia esquecer de passar na parte dos eletrodomésticos e comprar uma varinha mágica. Com um bom tradutor, acho que faço o mercado em poucas horas. Como está escurecendo muito tarde, ainda dá pra mais uma caminhada na beira do mar, com direito a um fino na esplanada, umas punhetas de bacalhau. Temos já alguns poucos conhecidos pela cidade, gajos porreiros, com quem rimos ao comparar os “nossos portugueses”. Malta fixe. O fim do dia foi assim. Eles a rir do nosso gerúndio, do nosso “alô”, do “oi” que usamos pra quase tudo. Nós a achar piada, ops, graça, das bichas, da pronúncia da “pichina”(a nossa piscina), do “tô sim…”.

As diferenças não nos separam. Ao contrário. Temos aprendido muito com as pessoas com quem convivemos. Apesar de palavras e expressões muitas vezes serem diferentes, viver em Portugal é uma experiência muito gratificante e nos faz entender muito do que somos, da nossa cultura e tradição. É bué fixe, ó pá! E termino por aqui do jeito bem português: beijinhos grandes! Continuação.

P.S.1 – amigos brasileiros, sei que vão precisar do Google para saber o que são algumas dessas palavras

P.S.2 – amigos portugueses, se escrevi alguma asneira, não achem piada, se faz favor…

***
Marcos Freire mora com a família em Ovar, Portugal, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Marcos é jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país. Escreve quinzenalmente no São Paulo São.

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