Emicida: ‘Eu sou a síntese desse outro Brasil’

Emicida está prestes a lançar seu sexto trabalho. Completando oficialmente dez anos de carreira, ele esteve, pela primeira vez, na África. Fez a travessia em busca de elementos para fundamentar suas músicas e a própria vida. No palco ou fora dele, o rapper marca um posicionamento claro a favor da liberdade em tempos de reacionarismo.

“Quer algo mais rock’n’roll que a vida dos preto?”, pergunta Emicida em um post no Facebook. O texto vem acompanhado de um vídeo em que ele aparece curtindo um som pesado, que fala de camburões e antigos navios negreiros. Na caixa de comentários, os fãs debatem que som é aquele, que não encontram em lugar nenhum. Os mais espertos comentam que deve ser uma música nova do rapper. Estão certos. O nome da música é Boa Esperança e estará no novo disco de Emicida, ainda sem título definido, trabalho que nasceu a partir da viagem para Cabo Verde e Angola, parte da África lusófona, e foi finalizado no Brasil.

Essa canção, no entanto, foi criada na Água Fria, bairro da zona norte de São Paulo, onde Emicida vive. Momentos antes de embarcar para o continente africano, em março passado, ansioso com o que iria encontrar por lá, ele revelou à reportagem da Brasileiros por que deu esse título à música: “Boa Esperança é o nome de um navio negreiro no livro A Rainha Ginga, do angolano José Eduardo Agualuza. Um navio no qual um padre viaja e faz o caminho contrário da escravidão. “Passei um tempo sem fazer nada, só lendo esse livro.” Além da inspiração literária, o fato de os navios negreiros levarem nomes que sugeriam confiança e felicidade incomodou o rapper. Obras de outros autores africanos, como os moçambicanos Mia Couto e Paulina Chiziane, estão entre suas preferências. “Mia Couto é foda, o jeito que ele escreve é muito bonito, fala de maneira doce da realidade.”

Boa Esperança foi devagarzinho ganhando o mundo. Primeiro, no palco do Circo Voador, no Rio de Janeiro. Depois pelo YouTube, com uma gravação amadora de um trecho da música apresentada no show carioca. As imagens são bonitas, o som não é dos melhores, só que a cena toda faz a gente se lembrar dos tempos em que ele era um desconhecido do grande público, mas um MC de sucesso por seus vídeos nas batalhas de rima que aconteciam na Galeria Olido ou no metrô Santa Cruz, entre outros pontos de São Paulo.

Não acabou aí a repercussão da nova música. No Twitter, frases da canção, como “cês diz que nosso pau é grande, espera até ver o nosso ódio”, já se espalhavam.

Emicida – “Boa Esperança” (Videoclipe Oficial – Direção Kátia Lund e João Wainer): https://youtu.be/AauVal4ODbE

 

Na última quarta-feira de junho, sem aviso prévio, Emicida liberou a íntegra de Boa Esperança, mais uma vez pelo YouTube. Também divulgou um clipe do single, dirigido por João Wainer (diretor do documentário Junho) e Kátia Lund (codiretora de Cidade de Deus ao lado de Fernando Meirelles), em que conta a história de uma revolta propagada por um grupo de empregadas domésticas. No Youtube, o vídeo já soma quase 600 mil visualizações, além de ter gerado um forte debate sobre seus significados. (Leia: 5 textos para provar que “Boa Esperança”, a música nova de Emicida, é uma aula de história negra e contemporânea). 

Por enquanto, o rapper não pode contar mais sobre o novo disco, previsto para o final deste mês de julho. Mas, durante os quatro encontros que manteve com a reportagem da Brasileiros, foi adiantando os efeitos da recente viagem à África. “Mudou tudo. Tem um Emicida antes e depois de Cabo Verde e Angola.” Na sequência, faz referências ao cientista social cubano Carlos Moore ao dizer: “É muito difícil odiar a África e os africanos sem que, em algum ponto, você odeie a si mesmo. Esse bagulho ficou girando na minha cabeça”.

Em território africano, Emicida reavaliou tudo o que leu durante a vida sobre o continente. “Percebi a interrupção gerada por uma cultura que não era dali, que passou a criminalizar a dança, o canto, o sorriso. Um mês depois, eu fui na França, fui olhar os murais da igreja e fiquei triste porque de todos os murais da igreja, aqueles vitrais lindões, o único que tava sorrindo era o diabo, mano. Aí pensei: ‘Caralho, a felicidade é um pecado mesmo, né?’.”

As composições do novo CD chegam após um 2014 quase parado em termos de produção. “É bom parar um pouco, cruzar os braços, parar de dar sua perspectiva para o mundo e ouvir o que os outros estão falando. É bom ouvir também. Isso é um ensinamento do jazz, porque, quando a gente ouve, consegue entrar na história de uma maneira melhor, entendeu?”

O artista em processo, como gosta de se definir, ouviu bastante e agora quer falar. Está de volta à ação, chegando ao ponto de se tornar uma figura difícil de se fotografar. É a intensidade com que sempre comandou o ritmo dos seus 15 minutos de fama que agora já duram uma década. Quando menos se espera, lá está Emicida na Virada Cultural de São Paulo, no final de junho, com todos da banda vestidos de branco, em protesto aos recentes casos de intolerância religiosa, como o da garota apedrejada saindo de um culto de Candomblé, em Salvador, e virando assunto nas redes sociais pelo discurso rimado e incisivo que fez antes da última música do show, abordando tópicos quentes que andam longe da boca de muitos artistas: redução da maioridade penal, racismo, violência policial, greve dos professores, padrão de beleza:

“E aí vira o quê? Os com diploma versus os consciência. A Fundação é tudo, menos Casa pra um interno. É mó boi odiar o diabo, eu quero ver cê se ver lá no inferno. Não existe amor em SP? Existe pra caralho. Cês acham que as Mães de Maio chora por quê? Tendo que sobreviver ao pai que abusa, ao ferro sob a blusa, às farda que mata nós e nunca fica reclusa, ao Estado que te usa, ao padrão de beleza musa e aos otário que inda quer vim me falar de racismo ao contrário. Tempo doido, tempo doido, a espinha gela, onde as mulher é estuprada e no final a culpa ainda é delas. O problema é seu e da sua dor. Às vezes, eu me sinto inútil aqui, que eu não valho nada, igual o governo tem tratado os professor. Mas pra esses bunda mole aí, que acha que nós tá dormindo, um aviso: não é porque nós tá sonhando que nós tá dormindo, viu?”

Emicida encara a responsabilidade de se posicionar politicamente da mesma forma com que se preocupa com sua vida artística e empresarial. Ele declarou voto em Dilma Rousseff nas últimas eleições, participou de um vídeo na campanha do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e não é fã da gestão do governador Geraldo Alckmin. Não se arrepende de nada, mas avalia: “Passou eu lá na televisão durante a campanha. Aí, saio nas ruas e os caras que gostam dela me falam: ‘Aê, Emicida, é isso mesmo’. E no meu bairro era só Aécio, mas ninguém fala nada para mim, não. Vai falar o quê? Eu sou a síntese desse outro Brasil aí no bairro”.

A ideia de Emicida é não ficar preso a um pensamento ou, em outras palavras, ser radical. “A coisa mais saudável para um governo é ser questionado, mas se você não faz ideia de quem é a responsabilidade, temos um problema muito sério. Se a gente que sugere um pensamento novo para o mundo, que é os caras de cabeça aberta, não conseguir trocar ideia por causa de política, fudeu.”

Do fundão

A ideia de liberdade para Leandro Roque de Oliveira, nome de batismo de Emicida, nem sempre foi clara. Nascido no bairro Jardim Fontalis, na zona norte paulistana, filho do Miguel e da dona Jacira, pais de outros três filhos, o rapper enfrentou as muitas barreiras impostas para os garotos da periferia. Perdeu o pai quando tinha 6 anos, vítima de uma briga de bar. Conviveu tanto com a violência a ponto de não sentir muita coisa ao ver um corpo estendido no chão enquanto ia para a escola, onde também não teve uma rotina suave. Quando estudou em uma sala majoritariamente de meninos, sofreu com o bullying e o racismo, inclusive de um colega negro. “Eu me vi como o último degrau mesmo”, diz, enquanto se lembra das risadas que o chinelo que calçava para ir ao colégio, mesmo durante o inverno, provocava nos colegas. Diante dessa situação, ele perdeu um ano de estudo, depois de ter cabulado aulas. Na rua, flertou por caminhos perigosos.

Hoje, ele conta que fumou escondido dos 10 aos 12 anos – hoje não bebe e não fuma, está mais para o nerd que gosta de quadrinhos da Vertigo e descolou um velho Super Nintendo. Para dona Jacira, a mudança de comportamento veio quando uma professora a alertou sobre a atenção que o filho dava para o desenho, o que a fez mudar sua postura diante do menino. “Antes, falava para ele: ‘Nunca vi japonês de olho grande’. E jogava tudo fora. Depois, parei de falar mal dos desenhos.” Foi pela paixão por mangás e histórias em quadrinhos que ele traçou um caminho rápido pelo design, área que cursou após terminar o Ensino Médio, e o gosto pelo rap, que sempre foi a trilha sonora de sua vida.

Fazer freestyle e improvisar rimas logo passou de hobby a trabalho e, tempos depois, um sonho. O apelido veio logo, por causa dos incontáveis “homicídios de MC”, que cometia usando seus versos como arma. A Rinha dos MCs, famoso encontro de rappers amadores em São Paulo, criado por Criolo e DJ Dan Dan, foi vencida por ele 14 vezes seguidas. “No metrô Santa Cruz, quem tinha contato com o rap já sabia que o Emicida seria uma promessa que vingaria. Ele era o melhor nas batalhas, tinha um improviso que ninguém tinha. Era muito melhor que todos os outros MCs. Na época, eu falava para alguns amigos: ‘Guardem o nome desse cara, porque ele vai estourar, vai ser capa de revista’”, conta o jornalista Bruno Tálamo.

Por Vinicius Felix. Leia a íntegra da matéria na edição 96 da Brasileiros. A revista completa 8 anos de vida. 

 

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