Esqueça o carro. A cidade caminhável é a bola da vez

“O legado da era do planejamento dominado pelo automóvel ainda é claramente visível em cidades do mundo todo. Esse legado pode ser notado em bairros sem calçada, espaços públicos tornados redundantes pelos carros estacionados e nas vias urbanas que segregam bairros para servir ao espraiamento dos subúrbios”. “Cities alive: Towards a walking world” – Relatório feito pela Arup, empresa de engenharia, design e planejamento urbano.

O relatório “Cities alive: Towards a walking world” (Cidades vivas: rumo a um mundo que anda a pé, em tradução livre), da empresa de engenharia Arup, fez um levantamento de 34 cidades globais com as maiores e menores taxas de caminhada. A mesma pesquisa traz, em um mapa-múndi, os dados nacionais de pedestres mortos em acidentes de trânsito.

Istambul, na Turquia, é a cidade com maior porcentagem de viagens feitas a pé, com 48%. Nas cinco piores posições da lista de viagens a pé estão quatro cidades americanas e uma canadense: Chicago, Toronto, Atlanta, Miami e Los Angeles (LA, a pior delas, tem apenas 4% de jornadas feitas a pé). Rio de Janeiro e São Paulo aparecem, respectivamente, em 8º e 12º lugar em relação à campeã turca.

Este índice de “andabilidade” observado pelo relatório é também um indicativo do modelo de cidade predominante no mundo todo: a América do Norte, por exemplo, claramente se destaca como uma parte do mundo muito dependente do carro.

O que torna uma cidade ‘caminhável’

Quando o espaço pelo qual se anda a pé é munido da estrutura necessária, esta pode até passar despercebida. Mas o pedestre certamente nota quando esse trajeto não prioriza as rotas caminháveis: calçadas quebradas ou muito estreitas, semáforos que não têm o tempo necessário para atravessar a rua, falta de acessibilidade para pedestres com necessidades especiais.

Um design urbano amigável para os pedestres é uma das chaves para tornar uma cidade caminhável. Rotas seguras para andar a pé, equipadas com calçadas bem mantidas, bancos, iluminação e bebedouros, por exemplo, encorajam as pessoas a caminharem mais.   

A pé pelas cidades brasileiras

Em abril de 2016, a ONG Cidade Ativa (em parceria com a rede Corrida Amiga) lançou a pesquisa COMO ANDA. Ela fez um levantamento das organizações que promovem a mobilidade a pé no Brasil, com o objetivo de identificar oportunidades e desafios, mapear e compartilhar dados das iniciativas nacionais que visam à construção de cidades caminháveis.

Um dos produtos da pesquisa é uma linha do tempo dos marcos da mobilidade a pé no Brasil, como a criação de calçadões, vias acessíveis aos pedestres, estatutos e leis que os protegem.

Outro permite consultar “como andam” os aspectos legislativos (como largura das calçadas, acessibilidade, sinalização, arborização, velocidade máxima permitida na via) que afetam a mobilidade a pé, em cinco capitais brasileiras.

Para a plataforma Como Anda, a precariedade em que se encontra boa parte das calçadas nas cidades brasileiras vincula, em se tratando do debate nacional sobre mobilidade a pé, melhorias neste tipo de infraestrutura ao tema da acessibilidade. Ou seja, a inclusão de setores com necessidades especiais de deslocamento na dinâmica cotidiana da cidade passa, também, pelo investimento nas calçadas.

A organização destaca ainda que o Brasil está no estágio de discutir demandas básicas, como a presença de calçadas, rebaixamento de guias em cruzamentos, pavimentos homogêneos e contínuos em suas cidades. Nesse contexto incipiente, falar sobre mobilidade a pé é também debater o direito de ir e vir e o próprio direito à cidade.

Por que andar pela cidade é desejável

Em uma palestra para o TED chamada “A cidade andável”, o urbanista Jeff Speck estabelece uma relação direta entre as cidades caminháveis e a qualidade de vida de seus habitantes.

Segundo Speck, as cidades que ocupam as posições mais altas napesquisa Mercer, um ranking anual das cidades do mundo com maior índice de qualidade de vida, são cidades caminháveis. Estão entre as dez melhores classificadas em 2016: Viena (Áustria), Vancouver (Canadá) e Copenhague (Dinamarca), todas conhecidas por seus planos de mobilidade dominados por pedestres e ciclistas.

O relatório “Cities Alive” define andar a pé como “a forma de transporte que libera menos carbono, a que polui menos, a mais barata e confiável e é também um ótimo nivelador social”. Ainda exalta que ter gente andando nos espaços urbanos os torna mais seguros para outras pessoas, e as deixa mais felizes.

Benefícios das ‘cidades caminháveis’, segundo o relatório 
 
1. Sociais

Saúde e bem-estar

Pessoas fisicamente ativas vivem mais: segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a falta de atividade física desponta como quarto maior fator de risco para a mortalidade global. No contexto urbano, o sedentarismo está ligado à ascensão do uso do carro e de meios de transporte ‘passivos’.

Uma cidade pensada para carros costuma contar com infraestrutura precária para percursos feitos a pé, escassez de instalações para recreação, tráfego intenso e baixa qualidade do ar. Com um design urbano específico, cidades caminháveis se opõem a esse modelo.

Andar na cidade, segundo o relatório,  também traz benefícios para a saúde mental: diminui o risco de stress, ansiedade e depressão e dá boas chances de um sono melhor. Além disso, economistas da Universidade de Zurique analisaram o efeito do deslocamento em função do trabalho para o bem-estar e concluíram que a felicidade é inversamente proporcional ao número de horas que se passa dirigindo até o trabalho.

Segurança

De acordo com a OMS, 270.000 pedestres perdem a vida anualmente no mundo todo em acidentes de carro. Além da redução da velocidade, o design das cidades também pode incrementar a segurança de quem anda. Reduzir a distância entre calçadas em um metro, por exemplo, jádiminui em 6% as colisões envolvendo pedestres.

Além disso, remodelar o ambiente urbano para encorajar que as pessoas andem por ele e realizem atividades no espaço público tem impacto direto sobre a sensação de segurança da população. No lugar de investimentos em sistemas de vigilância, passam a existir os “olhos da rua” – um monitoramento natural resultante do fluxo de pessoas, teorizado pela ativista canadense Jane Jacobs.

Placemaking (criação de lugares, em tradução livre) 

Intervenções que tornam pontos de encontro da cidade (parques, praças, ruas e calçadas) lugares mais agradáveis e atrativos, chamadas ‘placemaking’, impulsionam as pessoas a andarem mais. Eventos que fecham as ruas temporariamente para carros e deixam-nas abertas para as pessoas usufruírem, como a Ciclovía de Bogotá ou a Paulista aberta, em São Paulo, por exemplo, permitem uma experiência diferente de cidade e constroem respaldo político para melhoras mais duradouras.

Igualdade e coesão social

Todos são pedestres. Mesmo os que dirigem, são ciclistas ou usuários do transporte público, andam parte do trajeto até o meio de transporte que utilizam ou simplesmente atravessam a rua em algum momento. Andar é o mais acessível e democrático meio de transporte – é livre e promove a independência dos que não podem ou não querem ter um carro. O impacto na socialização também se faz notar: andar mais encoraja a interação entre as pessoas e desperta o senso de comunidade.

É necessário ampliar a acessibilidade das ruas para os habitantes com necessidades especiais de mobilidade: idosos, cadeirantes, grávidas, que são aqueles com maior demanda por uma infraestrutura apropriada para poderem se deslocar a pé. O design urbano também promove (ou impede) a inclusão.

2. Econômicos

“A melhor estratégia econômica que se pode ter como cidade [hoje] difere do jeito antigo – atraindo corporações, tentando ter um conglomerado biotecnológico, médico ou aeroespacial. É tornar-se um lugar onde as pessoas querem estar.” Jeff Speck – Urbanista, autor do livro “Walkable City”, em palestra no TED.

“Existe ligação direta entre a prosperidade econômica de uma cidade e a segurança e conveniência que seus pedestres experimentam.” Na cidade de Melbourne em 2012.

Movimentam a economia local

O comércio estruturado em shopping centers tem sido servido pelo carro. Uma rede urbana caminhável mais densa favorece outros tipos de comércio, como o surgimento de lojas menores, locais. 60% dos consumidores que frequentam a pé essas lojas, compram algo mais nos estabelecimentos vizinhos.

A possibilidade de andar a pé pela cidade impulsiona o turismo, impacta a vida cultural e a sociabilidade. Desde os anos 1980, Barcelona adotou uma política urbana voltada para aumentar os espaços de convivência, derrubando fábricas e depósitos sem uso. Nos últimos 20 anos, essas ações trouxeram um aumento de 1,7 para 7,4 milhões de visitantes anuais: 335% a mais.

Como as pessoas passaram a reclamar as ruas

Já nos anos 1960, a dominância do carro começou a ser questionada por um movimento liderado por pensadores como Lewis Mumford, Jane Jacobs, William H. Whyte e Jan Gehl, que defendiam que as cidades deveriam ser mais vivas, ocupadas pelas pessoas e caminháveis.

No entanto, só mais recentemente o debate urbano se tornou mais sensível ao peso do ato de andar sobre esse ideal mais “vivo” de cidade.

Nesse contexto, a mobilidade como um todo passou a ser reconhecida como um fator fundamental para o desenvolvimento urbano sustentável e para a qualidade de vida dos habitantes.

Cidades como Hamburgo, Helsinki e Madrid estudaram a hipótese de se livrarem completamente dos carros. Buenos Aires e São Paulo construíram ciclovias. Nova York e Los Angeles criaram intervenções de baixo custo para reservar algumas ruas apenas para os pedestres.

O relatório da Arup argumenta que, em escala global, os cidadãos estão voltando a reivindicar as ruas como espaços públicos. Formula ainda a ideia de que no Japão, Austrália, América do Norte, países europeus e alguns da América Latina, a cultura do carro está em declínio. Atingiu seu ápice e, atualmente, deixou de ser um definidor de status social para os jovens adultos.

***
Juliana Domingos de Lima no NEXO Jornal.

 

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