No próximo sábado (23 de outubro), o Instituto Moreira Salles inaugura, em sua sede de São Paulo, a exposição Constelação Clarice. A mostra investiga a poética da escritora Clarice Lispector (1920-1977), identificando temas e recursos estéticos presentes em sua produção. Em diálogo, são exibidas obras de 26 artistas visuais mulheres, que atuaram na mesma época de Clarice, entre as décadas de 1940 e 1970. No conjunto, há trabalhos de Maria Martins, Mira Schendel, Fayga Ostrower, Lygia Clark, Letícia Parente, Djanira e Celeida Tostes, entre outras.
A mostra reúne ainda aproximadamente 300 itens, incluindo manuscritos, fotografias, cartas, discos e matérias de imprensa, entre outros documentos do acervo pessoal da autora. A curadoria é do poeta Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS, e da escritora e crítica de arte Veronica Stigger. A entrada é gratuita, com agendamento prévio pelo site
Ocupando dois andares do IMS Paulista, a exposição celebra a obra e o legado de Clarice, cujo centenário foi comemorado no ano passado. Nome fundamental da literatura brasileira, a autora também nutria grande interesse pelas artes visuais, expresso tanto em sua incursão pela pintura, na década de 1970, quanto pela presença de personagens artistas em seus livros. Diante dessa proximidade, quais conexões seria possível estabelecer entre a produção textual de Clarice e as obras de mulheres que, no mesmo período, marcaram a história da arte brasileira? Como seus modos de criação se relacionam?
Para criar essas interlocuções, a curadoria adotou o conceito de constelação, presente no título e na expografia da mostra. Em 11 núcleos, são apresentados trabalhos em diversos suportes, como escultura, pintura, desenho, fotografia e vídeo. As obras das artistas estão sempre em diálogo com trechos de textos de Clarice, formando uma teia de novos significados, como apontam Ferraz e Stigger: “Por meio da aproximação propiciada por Clarice, ganha lugar uma compreensão renovada e mais complexa daquele momento da arte brasileira. Por outro lado, a partir dessa constelação entre os trabalhos plásticos e a escrita, também a literatura de Clarice aparece sob nova óptica.”
Na entrada da mostra, o público encontrará a escultura Calendário da eternidade, da artista Maria Martins, que também participa da exposição com outros trabalhos. De formato circular, a obra remete à ideia de continuidade, tema presente na produção de Clarice. Em seguida, são exibidas 18 pinturas de autoria da própria escritora, produzidas entre 1975 e 1976, sem pretensão profissional. Nos quadros, é possível identificar algumas recorrências, como o tratamento gestual e a predileção também pela circularidade.
Outro destaque é a seção “Tudo no mundo começou com um sim”, frase proveniente do romance A hora da estrela (1977). O núcleo aborda o tema da origem, que é recorrente na obra da autora, evocado por imagens como a do ovo e da caverna. No livro Água viva (1973), por exemplo, a narradora questiona: “Por que é que as coisas um instante antes de acontecerem parecem já ter acontecido?”. Neste eixo, há obras de Maria Polo, Anna Maria Maiolino, Celeida Tostes e Wega Nery, entre outras.
Já o núcleo “Eu não cabia” investiga o cenário da casa. Em muitos romances de Clarice, a banalidade do ambiente doméstico é interrompida por momentos de estranhamento e desconcerto. Esse questionamento do espaço do lar, transitando entre a segurança e o sufocamento, aparece também em obras como Caixa de fósforos, de Lygia Clark, no vídeo Eu armário de mim, de Letícia Parente, ou ainda nas pinturas coloridas de Wanda Pimentel e Eleonore Koch, que apresentam uma casa estranhamente vazia, por vezes vista pelas frestas.
Assim como a casa, o corpo é fonte de redescoberta na produção da autora. Ao romper com os papéis sociais, os protagonistas dos livros acabam se fragmentando, como pontua a curadoria: “Nessa caminhada para o desconhecido, os personagens de Clarice não raro perdem sua integridade pessoal, veem desmontar-se sua primeira identidade: o corpo”. Em diálogo, está a série Sônia, de Claudia Andujar, que retrata a mesma mulher a partir de vários ângulos distintos, ou ainda a famosa obra Epidermic Scapes, de Vera Chaves Barcellos, composta por imagens ampliadas da pele da própria artista.
Já na seção “Adoração pelo que existe”, a curadoria destaca a presença da natureza, em especial dos animais e vegetais, na obra da autora. Galinhas, cachorros, baratas, árvores e flores aparecem com frequência nos textos de Clarice, revelando outras formas de habitar o mundo, para além das certezas antropocêntricas. As formas e enigmas dos seres vivos são investigados ainda nas esculturas Pegada de onça brava, de Amelia Toledo, e Flores e troncos, de Wilma Martins, entre outras.
A mística também é uma característica central da produção de Clarice. Em seus textos, há referências tanto a elementos das culturas judaica e cristã quanto à astrologia e à prática da cartomancia. Neste núcleo, intitulado “A vida é sobrenatural”, estão trabalhos como Homenagem a Deus-Pai do Ocidente, de Mira Schendel, e a pintura Onírico, de Djanira. Os visitantes encontrarão ainda um áudio da escritora Hilda Hilst, no qual, em sua famosa residência na Casa do Sol, ela tenta estabelecer contato com o espírito de Clarice.
Outra questão central em sua obra é a reflexão sobre a própria escrita, como pontua a curadoria: “Para Clarice, a escrita é pensamento, mas também inscrição ― como se ferisse a matéria. Há algo de corporal no embate com a palavra”. A mostra traz obras que tratam dessa ideia de grafia, como algumas matrizes das xilogravuras de Fayga Ostrower, além dos manuscritos de A hora da estrela, um dos principais romances da escritora.
A última seção trata do tema do inacabado. Segundo Ferraz e Stigger, na produção de Clarice, “os questionamentos em relação ao começo da vida, do mundo e da escrita confundem-se com a permanente dúvida em relação ao momento em que as coisas se acabam: a conclusão dos textos ou o fim da própria vida”. Serão exibidos os manuscritos de Um sopro de vida, último livro da autora, que permaneceu inconcluso, e obras como a xilogravura Retorno, de Wilma Martins, e os registros da ação Caminhando, de Lygia Clark.
Nos dois andares da mostra, há ainda núcleos documentais, com itens que pertenceram à escritora, como cartas, diplomas, discos, máquinas de escrever e fotografias dos álbuns de família. Neste conjunto, destacam-se os quadros de sua coleção, entre os quais seu famoso retrato assinado pelo artista Giorgio de Chirico. Entre as fotografias, está um registro de Clarice tirado pelo romancista Erico Verissimo, na década de 1950, em Washington. O material inclui também as primeiras edições dos livros da autora, periódicos, além da entrevista que a escritora concedeu à TV Cultura, meses antes de sua morte, em 1977. A maioria dos itens exibidos provém dos arquivos do IMS e da Fundação Casa de Rui Barbosa, instituições que detêm o acervo da escritora, e da coleção pessoal de seu filho, Paulo Gurgel Valente.
Por ocasião da mostra, será lançado um catálogo, com textos críticos de especialistas na obra de Clarice, como Alexandre Nodari, Carlos Mendes de Sousa, Evando Nascimento, João Camillo Penna, José Miguel Wisnik, Nádia Battella Gotlib, Paulo Gurgel Valente, Yudith Rosenbaum e Vilma Arêas. A publicação estará à venda na Livraria IMS por Travessa, localizada no centro cultural, e na loja online.
Em cartaz até fevereiro de 2022, a exposição contará com uma ampla programação, que será divulgada posteriormente nos canais do IMS. Conteúdos sobre a autora também podem ser acessados no site https://claricelispector.
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Com informações do Instituto Moreira Salles.