Favelada e sorridente é um retrato dos problemas da moradia na Grande São Paulo

Quando olhei para Gisele, a primeira coisa que notei foi o tamanho da sua barriga. Na época, ela estava grávida de 7 ou 8 meses. O gênero biológico do bebê ainda era um mistério. Morava numa casa muito pequena, à beira de um córrego poluído. Ao entrar, notei o cheiro úmido do lugar. O chão era forrado com tapetes, e identifiquei somente dois cômodos, separados por uma cortina: uma cozinha e um quarto.

Com um sorriso gigante no rosto, me apresentou sua casa e sua família. Nunca cheguei a conhecer todos os 6 filhos, somente os menores. Um deles, o João, muito doentinho e sempre junto da mãe. Gisele o levava ao hospital com frequência por causa de suas crises de bronquite crônica.

Já na hora de sair, ela me contou a história da casa, como o marido dela, o Neno, a havia construído . Ele demorou três meses para erguê-la; numa briga, Gisele “botou o barraco no chão”. Neno a reergueu em dois dias. Ele é pedreiro sem emprego fixo, e sua paixão, além da família, é a poesia. Naquela época não estava escrevendo muitas, ou por falta de tempo, ou por falta de inspiração.

“Falei pra ele esperar só mais um pouquinho, que é pra ele chegar só quando a casa nova estiver pronta!”, disse Gisele, segurando a barriga. A tal casa nova ela iria receber no programa de construções da Organização Não Governamental TETO, que possui diversos projetos que lutam contra a pobreza extrema. O tamanho de 18m², para Gisele, é o suficiente para que ela possa juntar todos os filhos com ela – os mais velhos estão morando com a avó. “Meu sonho é poder ter todos aqui comigo!”.

A comunidade em que Gisele e sua família moram é apelidada carinhosamente de “Beverly Hills”, e está entre um córrego poluído e um muro da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Localizada em Ferraz de Vasconcelos, na grande São Paulo, Beverly concentra cerca de 70 casas, sendo apenas 4 de alvenaria. Antes de ir para lá, Gisele morava numa casa regular próximo dali. Pagava um aluguel de R$380, fora as contas básicas como luz e água. Era muito complicado manter as contas em dia e o bem-estar familiar, já que ela precisava ficar em casa com as crianças, e nem sempre Neno estava trabalhando. Com frequência, o pequeno João ficava internado e as atividades paravam.

“Boa parte do orçamento doméstico de uma família que não tem uma casa própria é para pagar o aluguel. A partir do momento que se consegue a casa própria, existem não só maiores facilidades econômicas e sociais, como se consegue oferecer melhores condições para seus filhos do que você teve. Além disso, ter bem-estar, tranquilidade, e se conseguir planejar minimamente”, esclarece o antropólogo Carlos Filadelfo de Aquino.

 Parte da família reunida em frente à antiga casa. Foto: Gregory Borges.

Não-cidade, não-sociedade

Um dia, Gisele disse para Neno: “Amor, tão invadindo um lugar ali embaixo, vamo tentar um terreno?”. E foram.

“Quando a gente morava ali [na casa de alvenaria alugada], morávamos na sociedade. Quando vim pra favela, eu achei que não tava mais na sociedade. Antes de vir pra cá, eu tinha uma mente totalmente diferente. Não deixava as crianças irem pra fora de casa, se sujarem. Eu não deixava as crianças se misturarem. Era o mesmo nível de dificuldade [financeira], só que a diferença era que antes eu estava no asfalto, e eles ali, na favela, no chão batido.”

“Primeiro as famílias vão e se fixam em um lugar que não é cidade, é uma negação da cidade. Por acaso, os próprios moradores de periferia se referem de maneira  diferente ao centro de São Paulo ao dizer que ‘vou para a cidade’”, afirma Carlos de Aquino. Na fala da Gisele, observa-se que a proximidade de sociedade e cidade também estão muito ligadas: pelo fato de um local ter asfalto, seria muito mais “sociedade” do que aquele que não têm; seria muito mais “cidade”.

O Urbanista André Luiz Teixeira dos Santos afirma que as favelas representam cerca de 11% das moradias em SP. Diferentemente do restante do país, em que a proporção de favelas diminuem ano a ano, existe um crescimento do indicativo dessas áreas numa proporção maior do que o próprio crescimento da cidade. “Cerca de 40% da cidade se encontra nessa condição; são favelas, somados à cortiços e loteamentos irregulares”, completa. “Essas regiões não tem nada [de infraestrutura], historicamente. É um terreno vazio onde você vai construir a sua casa, seu barraco. Se tiver mais condições, construir uma casa de alvenaria, no máximo. Depois o Estado vem trazer infraestrutura”, completa Carlos de Aquino.

“Hoje em dia eu vejo a discriminação que eu e ele [Neno] passamos”, me fala Gisele. Quando veio para Beverly Hills, ela chegou a 49kg. Não tinha vontade de comer, não queria ficar ali; estava infeliz. Mais infeliz ainda quando se viu sem apoio: por causa da sua mudança para a favela e de sua perda de peso, a família julgou que Gisele estava envolvida com drogas. “Tudo que a gente ia pedir pros outros… Achavam que era pra droga!”. Perderam amigos e se viram no fundo do poço. Passaram fome.

Quando engravidou novamente, há cerca de 4 anos, foi pedir ajuda à mãe. Caso estivesse usando substâncias ilícitas, acusaria nos exames toxicológicos do pré-natal. “Agora vou te mostrar como não tô usando droga”, disse à mãe. Não estava. Voltou a receber o apoio familiar e a reconstruir a sua vida, aos poucos. “Foi então que vocês chegaram”, se referindo à ONG TETO.

 

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 De dentro de Beverly Hills, vê-se o contraste da cidade: casas de alvenaria com acesso à rua e prédios da CDHU ao fundo. Foto: Natalie Majolo.

 

Moradia não é só casa

A casa construída pelo TETO é no mesmo terreno que a casa anterior; ou seja, o morador a desmonta e a construção é feita. Para que a família receba a casa, é preciso frequentar as reuniões rotineiras realizadas pela equipe fixa da ONG na comunidade. A família passa por um processo de conscientização contínua, e os voluntários somente ajudam na organização para que os moradores se mobilizem e lutem por seus direitos. O local não passa, necessariamente, por algum processo de regularização.

Por causa dessa falta de regularização do terreno, o endereço não é contabilizado. Ele não “existe”. Outra segregação passa a se acentuar: a pessoa, além de morar na periferia da cidade, também não possui endereço. Ela não pode sequer receber  uma conta em sua própria casa. Ela não tem comprovante de endereço. Dificilmente é contratada em um emprego formal. A pessoa não pode nem fazer uma compra pela internet e receber o produto em sua casa. Já percebeu que colocamos o nosso endereço em tudo?

Em outra visita dessas que fiz à comunidade, conheci uma senhora que tinha uma linda criança recém-nascida. Me contou que tinha feito o parto ali mesmo, na comunidade, pois não sabia exatamente quando o faria, e nem tinha dado tempo de ir até o hospital. Perguntei o motivo, e ela disse que desde que tinha se mudado para lá, perdeu o vínculo com o posto de saúde. Como não tinha um novo endereço, não pôde continuar o acompanhamento do pré-natal.

“A moradia é o emblema do acesso a um conjunto de direitos, desde questões triviais – como receber uma carta ou uma conta –, como também aqueles envolvidos com a própria cidade, que dão acesso aos equipamentos públicos que são fundamentais para o desenvolvimento humano dessas famílias, como educação, saúde, trabalho. Está envolvida com aspectos relacionais da questão de um local digno, de ter um conjunto de relações dentro desse espaço e com seu coletivo no entorno, e também desse acesso à cidade”, diz o urbanista André dos Santos.

A favela começa como um processo instantâneo, ocupando terrenos que estão vazios e se autoconstruindo. É uma expansão descontrolada e desregulamentada da cidade. As áreas centrais concentram historicamente a população mais abastada, e desde o século XIX é bem regulamentada. “Não é que as classes ricas vão para as áreas melhores, as áreas são melhores porque elas estão lá. Como elas estão lá, são atraídos mais investimentos públicos e privados, projetos de regulamentação e etc. O valor é posterior à chegada das famílias mais ricas, é mais caro justamente para reproduzir e contribuir para fixação das classes mais ricas nas áreas centrais”, afirma Carlos de Aquino.

As políticas públicas de moradia acabam por reproduzir essa desigualdade urbanística, a realidade da segregação urbana, em que os mais ricos se localizam no centro, onde existe mais infraestrutura e possibilidades, e os mais pobres na periferia. Como a “cidade” se localiza na área central, os mais pobres fazem o diário movimento pendular entre a sua casa (periferia) e seu trabalho, escola, saúde e lazer (centro).

 

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 Crianças brincando nas vielas de Beverly Hills. Foto: Natalie Majolo.

 

O benefício de uns em prol de outros

“Muita gente diz que as nossas cidades são mal planejadas. Na verdade elas são muito bem planejadas, mas só para certas classes. As mais ricas, por exemplo, são muito beneficiadas pelos desenhos urbanos. O Brasil é um país muito desigual, e investe no que é interessante para apenas alguns setores da nossa sociedade”, diz o antropólogo.

As políticas públicas de moradia se firmam nos processos burocráticos de licitação, assim como o restante das medidas estatais. A obra é realizada por uma empresa contratada, e vence aquela que dá o preço mais baixo no processo de licitação. O mesmo se aplica ao  quesito da área em que será feita a construção: a mais barata vence. As áreas periféricas, como carecem de infraestrutura, são mais baratas. Consequentemente, as próprias políticas públicas reproduzem o processo de periferização na construção de mais moradias populares. Como a política depende de empresas privadas para os empreendimentos, “as obras ficam à mercê desses interesses imobiliários e fundiários. Existem ações de especulação imobiliária, e se não houver regulamentação elas vão privilegiar setores que já são privilegiados”, completa Aquino.

“A política de planejamento urbano se direcionou, na maioria das cidades do país, quanto à  política de atendimento de determinados interesses econômicos, de produção da cidade dentro de um âmbito de  mais-valia. Ou seja, um aspecto crescente de valorização da terra e do produto imobiliário como uma tentativa de retorno crescente do capital investido de um determinado grupo nesse processo”, esclarece o urbanista André dos Santos.

Portanto, um direito constitucional garantido fica à mercê dos interesses econômicos de grupos que visam primordialmente o lucro.

 

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Gisele sorrindo dentro de sua casa nova. Foto: Natalie Majolo.

 

Novos projetos para velhas lutas

O Minha Casa Minha Vida é uma iniciativa do governo e tem oferecido condições melhores para que as famílias de baixa renda possam conquistar o sonho brasileiro da casa própria. Existem três tipos de projetos: aqueles que o poder público constrói, os da iniciativa privada e os de organizações sem fins lucrativos.

“O projeto ainda continua um processo de periferização das cidades brasileiras pois eles buscam terras mais baratas. Então os empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, de maneira geral, e no Brasil inteiro, ainda têm produzido moradia nas periferias”, diz Carlos de Aquino. Em contraponto, André dos Santos diz que “justamente por causa da questão de acesso a crédito, [o projeto] permite a viabilidade de moradias pra essa população que anteriormente não conseguia viabilizar”.

Apesar do aumento de possibilidade das famílias adquirirem a casa própria, elas ainda ficam reféns da burocracia estatal ou dos interesses privados. A alternativa são os projetos de organizações sem fins lucrativos, como ONGs e movimentos sociais. “Estamos falando dessas pessoas que estão inseridas no espaço de uma política habitacional que não permite o acesso delas a uma condição de melhor qualidade, de usufruto e de acesso à cidade. O movimento de moradia consegue, a partir desse conjunto de condições, inserir e absorver essas pessoas para uma luta comum, que é a luta do acesso a esse conjunto de direitos a moradia, a educação, a cidadania”, completa o urbanista.

A melhora na qualidade de vida das pessoas que adquirem, de algum forma, uma casa mais digna para se viver, é visível. Para quem está perto dessas pessoas, é de encher o coração de felicidade. Gisele recebeu a casa, e o mistério do gênero biológico do bebê se findou: Alice é a sétima filha, e traz a alegria de renovação na vida da família. O pequeno João, que ia regularmente ao hospital por causa da bronquite crônica, não precisou voltar mais até lá. Desde que receberam a casa, não teve mais nenhuma crise.

Neno, marido da Gisele, anda muito ocupado em seus trabalhos. Depois de mais de um mês sem visitar a casa, ela me convida pra entrar – com aquele sorriso maravilhoso de sempre. Me diz que “ainda não tá tudo pronto, o Neno anda trabalhando muito. Vamos fazer um banheirinho”; só falta o encanamento. Neno revitalizou a poesia de si mesmo. Desde que recebeu a casa, escreveu uma série de versos.

A família da Gisele e do Neno mudou de perspectiva com a melhora na casa. Deu esperanças, e novos planos têm surgido. Mas… e se todas as famílias tivessem essa oportunidade, de receber uma vida minimamente mais digna, quantas mudanças culturais e sociais não aflorariam pelas cidades?

***
Por Natalie Majolo na Jpress / Núcleo de Jornalismo Junior da ECA / USP.

 

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