Há 80 anos, pesquisa inédita estudava trabalhadores da limpeza urbana em São Paulo. O que mudou?

Mas foi a segunda pesquisa, sobre o padrão de vida dos funcionários da limpeza pública, que alcançou maior repercussão. Conduzido pelo sociólogo americano Samuel Lowrie, esse trabalho foi publicado em 1938, na Revista do Arquivo Municipal. O país estava sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, com uma nova Constituição, de 1937, garantindo a todos os cidadãos “o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto”. Dentro desse espírito, a Prefeitura investiu no levantamento da categoria de menor remuneração, partindo do princípio de que “o governo deve ser o primeiro a ajustar os salários, de maneira a fornecer a cada trabalhador uma renda suficiente para viver”.

Descarga de lixo para adubo em cemitério, em 1935. Foto: Amlurb / Divisão Técnica de Educação e Divulgação.

Uma visita a este trabalho, 80 anos depois, remete ao panorama da vida na cidade naquele período. Desde 1869, quando São Paulo tinha pouco mais de 30 mil habitantes, o serviço de limpeza pública funcionava de maneira regular no município e era um assunto da esfera pública, não mais privada. Nos anos 1930, a cidade já contava com 1 milhão de moradores. O lixo, que vinha sendo carregado por mulas, passara a ser transportado por caminhões movidos a gás produzido pela queima de carvão.

A pesquisa mostra que mazelas sociais constituem um fenômeno antigo, já arraigado na nossa história. O grupo de pesquisadores, comandado por Lowrie, entrevistou 306 famílias. No quesito alfabetização, apenas 58% desses funcionários da limpeza pública afirmaram saber ler e escrever, contra a média geral da cidade, na época de 79% (das pessoas com sete anos ou mais).

No setor da habitação é que aparecem os dados mais alarmantes: em três de cada cinco casos estudados, uma família inteira morava num único quarto. “Em alguns casos, encontramos até nove pessoas dormindo num só quarto”, diz o relatório final da pesquisa. O trabalho prossegue contando que 44% das famílias não tinham chuveiro ou banheiro para uso particular. Nas conclusões, Lowrie não deixa dúvidas: “As condições de trabalho ou os baixos salários, principalmente estes últimos, têm sobre os trabalhadores que entram para a Limpeza Pública um efeito seletivo tal, que com suas famílias eles formam um grupo anormal em comparação com a população da cidade”.

Coletor de lixo com tração animal, em 1930, na Ponte Pequena (região central de São Paulo) . Foto: Amlurb / Divisão Técnica de Educação e Divulgação.

Sete décadas se passaram e uma nova pesquisa sobre o padrão de vida dos funcionários da Limpeza Pública de São Paulo, feita pelo Dieese entre 2008 e 2010 (a última realizada sobre esta categoria), mostra que houve alguma evolução, mas a marginalização social permanece.

O estudo do Dieese revelou que 65% da categoria não havia ultrapassado o nível fundamental de ensino. Dos operários entrevistados, 94% tinham renda familiar mensal inferior a R$ 2,5 mil.

Um dado curioso, que mostra evolução, refere-se à moradia: mais da metade dos trabalhadores (56%) morava em casa própria. Ocorre que 16% dessas casas estavam em ruas não asfaltadas, 15% eram desprovidas de esgoto, 10% não tinham coleta de lixo na porta, 6% não tinham água encanada e 6% estavam em ruas sem iluminação.

O estudo do Dieese revelou que 65% da categoria não havia ultrapassado o nível fundamental de ensino. Foto: Estadão Conteúdo.

Assim como no trabalho de 1938, o relatório final demonstra que além da situação social a que esta categoria está submetida, pela baixa remuneração, ainda está exposta a discriminação: 42% dos funcionários entrevistados afirmaram já ter sofrido algum tipo de preconceito e segregação durante o exercício de suas funções.

São pessoas como um homem de 38 anos, que afirmou aos pesquisadores: “O nosso serviço não é respeitado pela população geral de São Paulo. Não respeitam porque a gente pega lixo… porque quem pega lixo, para eles, é pior que lixo.”

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Fernando Granato é autor de ‘O Negro da Chibata’ e da série ‘Memórias do Sertão’, sobre Guimarães Rosa. *Artigo publicado originalmente no caderno ‘Aliás’ do Estadão.

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