Intolerância

‘Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages’ (‘Intolerância’, em português) foi lançado em 1916 por D. W. Griffith. Com custo de produção sem precedentes à época, o filme, ainda mudo, tem cerca de 4 horas de duração e, por meio da dramatização de um poema de Walt Whitman, interliga quatro episódios da história da humanidade profundamente marcados pela intolerância: a guerra da Babilônia, na Mesopotâmia (cerca de 6 séculos a.C.); a crucificação de Cristo em 33, na Judéia; a noite de São Bartolomeu, na França do século XVI; e o amor de dois jovens durante uma greve de trabalhadores, nos Estados Unidos da era moderna.

A intransigência com relação a opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser que difiram dos nossos próprios, e a decorrente repressão, por meio da coação ou da força, das idéias que desaprovamos, têm sido a origem de enorme sofrimento e incontáveis barbáries ao longo da história. A incapacidade de aceitar e de conviver com a diferença é talvez um dos maiores males que podemos causar a nós mesmos.

O filme interliga quatro episódios da história da humanidade profundamente marcados pela intolerância.Na última quarta-feira, dia 8 de novembro, por uma manobra da bancada evangélica, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou um Projeto de Emenda à Constituição (PEC 181/2015) cujo texto  criminaliza a interrupção da vida a qualquer momento a partir da concepção – inclusive nos casos em que o aborto é hoje considerado legal pela legislação brasileira (como quando decorrente do crime de estupro, ou quando a gravidez representa risco à vida da mãe).

Em meio aos inúmeros textos, reportagens e manifestações que se seguiram sobre o assunto, lembrei de uma matéria feita por um jornal de grande circulação alguns anos atrás, à época em que o STF julgava a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos. Nessa matéria, duas mulheres eram entrevistadas: a primeira contava do sofrimento que tinha vivido por ter sido obrigada a gestar por 9 meses um feto que sabia anencéfalo – mesmo tendo recorrido a várias instâncias judiciais, não obteve autorização para um aborto a tempo de fazê-lo de maneira segura. Dizia ter passado 9 meses preparando-se para o enterro de um filho que nem chegou a conhecer, e que a experiência fora traumática a ponto de fazê-la desistir de uma nova gravidez.

A incapacidade de aceitar e de conviver com a diferença é talvez um dos maiores males que podemos causar a nós mesmos.A segunda entrevista era com uma mulher que também havia tido uma gravidez de anencéfalo, porém, diferentemente da primeira, tinha optado por levar a gravidez até o final, convicta de que aquela era a conduta correta. Mãe já de um menino de 3 anos, tinha enterrado há pouco seu natimorto, e esperava apenas recuperar-se fisicamente para tentar uma nova gravidez.

O que me chamou a atenção nas entrevistas não foi constatar que, frente a uma mesma situação, duas pessoas (de condições sócio-econômicas e culturais muito próximas) tinham posturas tão distintas – mas o fato de que, enquanto a primeira defendia o direito à escolha, a segunda condenava veementemente quem quisesse fazer uma escolha diferente da dela. Pior, defendia que não houvesse a possibilidade da escolha – afinal, sendo sua conduta “obviamente” a correta, por que permitir que alguém tivesse outra, “errada”?

Na origem da negação da legitimidade de diferentes opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser estão a vaidade e a arrogância. Julgar que o outro seja menos competente para fazer escolhas e traçar caminhos, acreditar que a nossa verdade deva ser também a verdade do outro, mostra o quanto ainda devemos evoluir como seres e como cidadãos. Milhares de anos depois, após tanto conhecimento, tantas descobertas e tecnologias, ainda permitimos que a intolerância escravize a liberdade de escolha a que todos temos direito.

Para saber mais sobre o filme ‘Intolerância’: https://youtu.be/GF7ho_-1aWo

(Em tempo: o texto da PEC segue para discussão de seus destaques no próximo dia 21 de novembro. Se aprovado, vai para duas sessões de votação na Câmara, onde precisa ter 308 votos favoráveis para ser aprovado. Havendo aprovação, segue para o Senado.)

***
Valéria Midena, arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção, escreve quinzenalmente no São Paulo São. Ela é autora e editora do site SobreTodasAsCoisas e sócia do MaturityNow.

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