Jan Gehl: os paradoxos e as lições de urbanismo na favela mais antiga de Buenos Aires

Nesta, Mayra Madriz – associada de Gehl – e Jeff Risom – sócio e diretor geral da Gehl US – apresentam sua jornada pela Villa 31 em conjunto com cinco lições de desenho que aprenderam com o assentamento informal mais emblemático de Buenos Aires. Uma história interessante e complexa acompanhada das ilustrações do argentino Fernando Neyra. Leia o texto a seguir:

Fomos a Buenos Aires com a tarefa de ajudar a redesenhar o assentamento informal mais emblemático da cidade e acabamos valorizando o que seus moradores já haviam construído.

Planejadores e urbanistas enfrentam frequentemente um paradoxo desconfortável: as pessoas tendem a preferir bairros que se desenvolveram organicamente, graças às contribuições de muitos, comparado àqueles planejados por um pequeno grupo de especialistas. Os urbanistas gostam de usar termos como “orgânico”, “espontâneo” e “autêntico”. No entanto, eles tendem a planejar e projetar áreas que restringem essas mesmas características. Enfrentamos esse paradoxo de forma muito explícita quando a Gehl, empresa onde trabalhamos como urbanistas, recebeu um convite do governo de Buenos Aires para prestar assessoria de desenho em um ambicioso projeto, liderado pela Secretaria de Integração Social e Urbana da cidade, para a remodelação do assentamento informal mais emblemático da capital argentina. O plano procura transformar a Villa 31 – villa, que significa favela – em uma comunidade, um bairro propriamente dito.

A Villa 31 é um dos bairros mais interessantes e vibrantes de Buenos Aires. Possui a granularidade e escala dos assentamentos medievais em que turistas se reúnem, lugares como Siena, na Itália. Tem essa vida na rua, com crianças correndo e brincando, cidades que, como Nova Iorque ou Melbourne, aspiram alcançar através de iniciativas Play Streets – nas quais as ruas são fechadas ao trânsito por períodos definidos, a fim de abri-las à comunidade e promover a atividade física. Com as ruas cheias de ciclistas e pedestres, a cidade tem uma divisão modal mais parecida à de Copenhague e outras cidades na vanguarda dos transportes do que a outros bairros de Buenos Aires.

No entanto, devemos ter cuidado para não idealizar essas características.

Estrategicamente localizada ao lado do bairro mais rico da capital, a Villa 31 é uma dolorosa lembrança da profunda disparidade socioeconômica na Argentina. Enquanto a maioria da cidade é reverenciada como uma metrópole sofisticada, 37 por cento das oito mil famílias neste assentamento informal não têm cozinhas e um quarto destas não tem banheiros. Alguns residentes carregam um par de sapatos extras para vestir depois de caminhar pelas ruas cobertas de barro. Alguns corredores são tão estreitos que não permitem a passagem de veículos de emergência, o que significa que centenas de famílias estão fora do alcance deles. A maior parte das casas não tem água potável nem se encontra conectada à rede de esgoto. A eletricidade está disponível através de perigosas conexões informais, que já resultaram em eletrocussões e explosões fatais. A maioria das casas estão superlotadas e carecem de uma qualidade adequada de ventilação no interior. Embora a comunidade esteja localizada nas proximidades de um centro de transporte, nenhuma das linhas de trânsito atravessa-a e o acesso pedestre é ainda limitado devido às gangues que controlam determinadas vias de acesso.

Após 80 anos de abandono, o governo municipal decidiu enfrentar o desafio e ampliar o escopo de serviços e infraestrutura na Villa 31. O objetivo é elevar os padrões de qualidade de vida aos mesmos níveis que no restante da cidade. À frente de uma tarefa tão extraordinária e complexa se encontra uma motivada equipe de jovens arquitetos, engenheiros, sociólogos e especialistas em políticas públicas. Gehl juntou-se a eles para ajudá-los a realizar a missão social do projeto através do desenho urbano, enfatizando a mobilidade sustentável e o espaço público. Como parte de nosso trabalho, nos dedicamos a estudar a vida pública em sete representativos bairros da diversidade de Buenos Aires e a aprender com a equipe de alcance público que trabalha com residentes por quase dois anos. Nossas descobertas revelam que, nos indicadores-chave da vitalidade urbana e da mobilidade sustentável, a comunidade excede as áreas mais ricas da cidade. Nas ruas e espaços da Villa 31, há mais pessoas caminhando, andando de bicicleta, socializando, jogando e assistindo as pessoas passar do que no resto dos seis bairros que estudamos. Além disso, percebemos que, em comparação com os bairros informais construídos pelos próprios habitantes após a intervenção do governo, a maioria dos projetos de habitação social subsidiados pelo Estado durante o último século deram piores resultados (no que se refere a Segurança e Saúde).

Não há dúvida sobre a necessidade urgente de ampliar o acesso aos serviços públicos nesta área. Durante décadas, os moradores da Villa 31 exigiram infraestrutura básica e presença governamental. No entanto, quanto mais tempo passamos na comunidade, melhor conseguimos apreciar a infraestrutura urbana que as pessoas do bairro já desenvolveram. Essas famílias enfrentam uma séria privação em muitos aspectos e, no entanto, em meio à escassez, o bairro tem características – entre eles, ruas tranquilas e uma vida pública dinâmica – que algumas das cidades mais privilegiadas aspiram.

Juntamente com uma equipe dedicada – Diego, Lucho, Licho, Nacho e Juani- Gehl concebeu estratégias para conectar o bairro, que foi isolado há muito tempo, com seu ambiente formal. O objetivo de fazer com que a comunidade seja fisicamente mais acessível é complementado pelo processo complexo de integração formal da villa no tecido social e econômico da cidade. Temos ajudado a projetar ruas e espaços para interligar as microcomunidades que compõem a villa e assim reforçar a noção de que o espaço público realmente constitui a base comum e a essência do distrito.

À medida que nossos projetos evoluíram, nos tornamos mais conscientes dos riscos que implica a reurbanização. Na Villa, aderir aos códigos de construção modernos significa ampliar as ruas, restringindo o zelo empresarial dos moradores e, possivelmente, aumentando os custos de construção. Para cumprir as normas, a comunidade seria forçada a desistir de alguns dos seus potentes atributos.

Os arquitetos da Villa 31, isto é, seus habitantes, criaram um lugar cujas características é necessário preservar ao mesmo tempo que os arquitetos se unem ao projeto. Abaixo, apresentamos as cinco lições de desenho mais importantes que aprendemos com a Villa 31, ilustrada pelo artista local Fernando Neyra.

1. A proximidade é importante

Construído pelos próprios moradores em terrenos de propriedade pública perto do principal centro de trânsito da cidade, Villa 31 tem propiciado a migrantes e famílias de baixa renda algo que nem o mercado, nem a maioria dos programas governamentais conseguiram fazer: a oportunidade de viver na proximidade das fontes de emprego, serviços e outras comodidades que a cidade oferece. Na Argentina, como nos Estados Unidos e na Europa, há uma demanda insatisfeita para habitações acessíveis perto dos centros de trabalho. Infelizmente, a oferta de habitação a preços acessíveis, incluindo assistência social, muitas vezes se limita a áreas residenciais na periferia, que não têm acesso ao transporte público e empregos adequados. Isso restringe as oportunidades para os moradores, obrigando-os a se deslocarem diariamente para o local de trabalho, condenando-os a desperdiçarem desnecessariamente o valioso tempo.

2. Um bairro pode ao mesmo tempo ser denso e ter escala humana

Em uma cidade marcada por arranha-céus e pelo movimento rápido do trânsito em avenidas de oito pistas, as ruas estreitas e a forma compacta da villa proporcionam uma ruptura com o barulho e a agitação da vida urbana. Embora a Villa 31 seja um dos bairros mais densos da cidade, a maioria dos edifícios tem menos de cinco andares de altura. A largura das ruas oscila entre 3 e 16 metros, gerando uma rede de becos compartilhados caracterizados por um agradável microclima. Com pisos inferiores dinâmicos e varandas abertas, os estreitos edifícios que compõem os blocos densos garantem que sempre haja um par de olhos olhando a rua. Em vez de se ajustarem a uma quadrícula perfeita, esses becos se curvam em torno das estruturas, criando uma rede de passagens ondulantes que descobrem diferentes pontos de vista do distrito e seus arredores. Estas passagens irregulares variam em largura, o que permite surgir pequenas praças e espaços de reunião. Os becos tornam-se atalhos entre vias paralelas, permitindo que os pedestres tomem rotas mais curtas e diretas do que os veículos.

3. As ruas podem ser espaços públicos alegres e seguros

As ruas estreitas, juntamente com a atividade constante, forçam os motoristas a se moverem lentamente através do tecido da comunidade. O ritmo lento do tráfego gera um ambiente social mais seguro e silencioso do que outras áreas da cidade que foram projetadas especificamente para o fluxo de automóveis. As ruas da comunidade tornam-se então um ponto de convergência – um espaço para trocas ocasionais e encontros frequentes. Mesmo pequenas, as crianças se reúnem para brincar fora de casa sem supervisão, mas sempre próximas dos adultos. Ao transitar pelas ruas da comunidade, você pode observar as famílias sentadas em frente às casas, reunidas para conversar com os vizinhos ou cuidar de crianças. É possível ver os residentes da terceira idade se envolverem, da varanda ou da janela da sala de estar, conversando com os pedestres. Na comunidade, uma pequena unidade no piso térreo permite que uma pessoa idosa viva de forma independente e participe da vida da comunidade.

4. A arquitetura flexível gera oportunidades econômicas

Na villa, a casa é muito mais do que uma vivenda – é uma plataforma para o progresso econômico. Uma família imigrante pode começar, por exemplo, com uma estrutura de dois quartos em um andar. Uma porta ou janela virada para a rua é tudo o que necessário para estabelecer uma pequena loja. As iniciativas empresariais podem ser testadas sem os riscos e custos de alugar um espaço comercial. Se o negócio falhar, é possível transformá-lo e tentar novamente com uma nova e melhor ideia. Se o negócio tiver sucesso, ela pode expandir e ocupar o primeiro pavimento, enquanto a renda comercial pode ser usada para financiar a construção de um segundo pavimento destinado a habitação. Além disso, um terceiro pavimento com acesso independente pode ser convertido em um apartamento para alugar a um primo ou a um casal de inquilinos. A casa se adapta e ajusta constantemente. Pode ser subdividida quando a família cresce ou é alugada quando um membro da família se muda. Muitos dos moradores da comunidade vivem à margem do sistema bancário formal, por isso uma casa maior representa uma forma de economizar tanto quanto uma fonte de renda. Ao longo do tempo, uma empresa de sucesso pode tornar-se um bem ativo  valioso para o bairro, permitindo aos vizinhos atenderem suas necessidades ao virar da esquina. Atualmente, um em cada cinco edifícios na cidade abriga um negócio. Em uma dessas ruas há um mercado de vegetais, um cibercafé, um cabeleireiro, uma lavanderia, uma lanchonete e até mesmo um consultório odontológico. Cada uma dessas empresas é um testemunho do impulso empresarial dos residentes.

5. O caráter único de cada casa configura o espaço

Os projetos tradicionais de habitação pública colocam os habitantes em módulos regulares e padrões. São estruturas com formas previsíveis e uniformes, repetidas em fileiras ordenadas. As modificações personalizadas no exterior das habitações são proibidas, uma vez que afetam a pureza arquitetônica da visão do projeto. Livre de ideias estéticas rigorosas e monolíticas, as casas da comunidade refletem a personalidade e o gosto de seus habitantes. Com um olhar atento, uma caminhada através da comunidade revela, através das cores e materiais escolhidos, o orgulho que as pessoas sentem por suas casas. Em uma rua tranquila, uma fachada carrega uma telha pintada à mão, indicando o número da casa e o sobrenome da família; a casa pintada lembra aqueles que passam para a família orgulhosa que a habita.

Um novo paradigma

Durante duas décadas, os moradores da comunidade exigiram mudanças. Hoje em dia, muitos agradecem pelas melhorias que o governo realiza no bairro. Mas é imprescindível enfatizar que não devemos idealizar essas condições, decorrentes da escassez e da necessidade. No entanto, também precisamos reconhecer os valores e os pontos fortes da comunidade, a fim de preservá-los no bairro após a reconstrução, e aplicar as lições aprendidas à outros projetos de desenho urbano.

Os novos investimentos devem ser direcionados às necessidades reais da comunidade, respeitando as estruturas sociais que lhe permitiram manter-se energéticos diante da adversidade. Estamos convencidos de que a forma urbana da comunidade – proximidade com os locais de trabalho, arquitetura flexível e adaptável, ruas compactas e transitáveis e andares inferiores dinâmicos – não só influenciaram o forte vínculo social que une os moradores, mas também as estruturas extraordinariamente resilientes em que habitam. Ao estudar e aprender de comunidades auto-construídas, como a Villa 31, os arquitetos envolvidos na criação de habitações sociais na América Latina e em outros lugares, proporcionam um grande contributo para a cidadania. Os líderes locais devem aceitar e adotar o paradoxo que os lugares como a cidade simbolizam. Esses espaços urbanos requerem apoio público sem regulamentar excessivamente a vida orgânica que já floresceu na sua ausência.

Extendemos nossos agradecimentos especiais a toda a equipe do Barrio 31 e especialmente a Diego, Lucho, Licho, Nacho e Juani. Agradecemos também a David Sim, que influenciou nossa abordagem neste projeto e as ideias neste artigo.

***
Por Fabian Dejtiar no Arch Daily. Ilustrações de Fernando Neyra.

 

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