Leda

Naquele dia, foi diferente. Minha prima Lia completava dezoito anos e tinha acabado de ingressar na faculdade, o que fazia daquela uma dupla comemoração. (Aos meus olhos, tripla. Afinal, para uma menina que nem chegara aos doze, a conquista dos dezoito valia o dobro de qualquer outra.)

Além dos tios, primos e sanduíches de sempre, a festa tinha lanternas de papel colorido penduradas pela sala, salgadinhos encomendados à cozinheira do bairro, uma vitrola com músicas que eu nunca tinha ouvido e muitos jovens que eu nunca tinha visto. Eram amigos de Lia, amigos de Dora, sua irmã mais velha, amigos de amigos… todos parte de um universo fascinante ao qual eu sonhava pertencer.

A presença familiar lhes impunha algum constrangimento, mas ainda assim circulavam com soltura, revelando uma alegre cumplicidade. Eu, que em timidez só perdia para meu primo Vítor (nas festas, Vítor se refugiava na garagem com uma pilha de gibis), fiquei aliviada ao descobrir uma cadeira vazia no canto da sala, de onde podia captar tudo que meus olhos, ouvidos e sentidos permitissem, sem precisar expor minha condição infantil.

Foi nesse momento que ela chegou. Chamava-se Leda, e sua figura se distanciava anos-luz de todas as referências estéticas que eu tinha até então. Não apenas pelos cabelos longos e displicentes, os olhos curiosos, o vestido fluido e colorido… havia algo de mágico na maneira com que movia seu corpo, cujas formas arredondadas e generosas nada tinham a ver com o padrão convencional de beleza feminina. Aquele conjunto, mais os colares de miçangas, mil pulseiras de prata, a voz grave, a risada farta… Leda me parecia a tradução da liberdade, transitando com leveza dentro e, ao mesmo tempo, longe de tudo. 

Em meio ao sons difusos da festa, ouvi perto de mim: “A Leda também é da História?” “Não, ela é da FAU.” Voltei minha atenção à conversa, tentando capturar informações que me ajudassem a traduzir aquela pessoa. Eu sabia o que era USP, mas a ela associava a sisudez e a formalidade dos vários advogados da família, como meu pai, ou a assepsia apavorante do consultório de meu tio Haroldo, dentista de todos nós. Descobrir que, naquela universidade, havia uma outra escola capaz de atrair pessoas como Leda fez com que, em poucos minutos, e sem mesmo saber ao certo o que era arquitetura, eu decretasse: “É na FAU que eu vou estudar.”

O professor e arquiteto Julio Roberto Katinsky. Foto: Rogério Canella / Folhapress.

Alguns anos depois, um teste vocacional, além de um histórico de boas notas, me ajudaram a convencer meus pais de minha escolha – absolutamente inédita na família. Ingressei na FAUUSP ainda sem noção do que me esperava: lembro de uma das primeiras aulas de História da Arquitetura, o professor Julio Roberto Katinsky – uma das mentes mais brilhantes que já conheci –, falando sobre Carta de Atenas, Bauhaus e Le Corbusier, e eu em estado quase catatônico com aqueles nomes e expressões que nunca tinha ouvido; lembro do tempo que levei para discernir os escopos das disciplinas Comunicação Visual e Desenho Industrial; de colegas que usavam os ateliês para exercer seus talentos nas mais diversas áreas, da fotografia à música, da serigrafia à dança, da marcenaria ao audiovisual; de sucessivas e incansáveis assembleias, com sucessivos e incansáveis debates sobre tudo; lembro da luz das clarabóias, do silêncio da biblioteca, da pluralidade das pessoas. E lembro da liberdade – das mais plena e encantadora sensação de liberdade.

Cursei a FAU em cinco anos, e já no segundo tinha entendido que não trabalharia com Arquitetura. Ao longo das três décadas que se passaram desde minha graduação, trabalhei com design de interiores, de mobiliário, de embalagens e de marcas; sem nunca parar de estudar, transitei por publicidade, moda, História da Arte, pesquisa de mercado, Filosofia e Antropologia; migrei para o branding, para a produção de conteúdo e, mais recentemente, passei a me envolver com escrita literária. Sem que me desse conta, o exercício da liberdade de alguma maneira se manteve como meu guia durante todo esse percurso.

Acho que Leda nunca soube de minha existência. Já eu, até hoje guardo a sua dentro de mim, com um misto de nostalgia e gratidão pela imensa luz que, como farol, ela posicionou para minha trajetória.

***
Valéria Midena, arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção, escreve quinzenalmente no São Paulo São. Ela é autora e editora do site SobreTodasAsCoisas.

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