Luzes da cidade: Guilherme de Almeida e o cinema

Finda a jornada de trabalho nas redações e nas escolas, poetava. Até o momento, sabíamos que a luz partida de sua casa em Perdizes, intensa a ponto de guiar os pedestres pelas madrugadas, movimentava o escritor para que concebesse poemas excelentes, letras para canções populares, traduções literárias e obras de design gráfico.

Somente agora, contudo, entendemos que o príncipe dos poetas brasileiros também fazia reavivar na sua residência as reflexões sobre outra luz, aquela projetada nas salas de cinema. Guilherme de Almeida (1890-1969) foi um pioneiro da crítica cinematográfica no Brasil, embora raramente se tenha ouvido falar disso antes.

E por que essa informação permaneceu de difícil alcance ao longo dos anos? Talvez porque o escritor tenha sido alijado de interesse pelo cânone modernista. Não importou que Manuel Bandeira e os Andrades, Mário ou Oswald, tivessem respeitado os versos do colega de movimento. Ele se veria classificado parnasiano pela crítica acadêmica. Não teria ocorrido de forma diferente em relação ao cinema.

Almeida nos anos 1950 e uma cena de Aurora, o filme de Murnau que “inventou o cinema”. Foto: Acervo.

Para a academia, o principal, pioneiro crítico cinematográfico foi Paulo Emilio Salles Gomes, como se sua grandeza nesse campo não houvesse alcançado precedentes. Em vida, Almeida usou um estratagema para combater o desprezo. Disse não levar nada a sério. “Nada: nem mesmo essa sabedoria, essa filosofia, essa atitude. Nada! E, principalmente, ninguém.” 

Entre 1926 e 1942, escreveria a coluna Cinematographos, do jornal O Estado de S. Paulo. Sob o pseudônimo G, armava-se de iluminações, enquanto concomitantemente redigia, como Guy, a coluna social do diário. Era reflexivo e divertido quando analisava os filmes.

Queria ver o cinema brasileiro andar, embora isso custasse a acontecer, especialmente nos anos 1920. Suas decepções em relação a esse lento despertar foram confundidas, no decorrer do tempo, com desinteresse pela arte nacional.

E o volume Cinematographos – Antologia da crítica cinematográfica, organizado por Donny Correia e Marcelo Tápia, pesquisadores da Casa Guilherme de Almeida, chega para desfazer esta e outras confusões.

Cinematographos: Antologia da crítica cinematográfica – Guilherme de Almeida. Donny Correia e Marcelo Tápia (orgs.). Editora Unesp. 680 págs. R$ 95

Neste que pretende ser o primeiro de dois volumes a abarcar suas críticas (foram selecionados, no período de um ano e meio, 218 de um total de 2.713 textos produzidos até 1942, quando o poeta assumiu a direção da Folha da Manhã), o olhar é civilizador. No início, a coluna Cinematographos apenas apontava os filmes em cartaz. Mas o crítico a ampliaria de modo a lutar para que o cinema fosse entendido como arte.

Antes do lançamento de São Paulo, Sinfonia da Metrópole ou Fragmentos da Vida, obras orquestradas em 1929 para reproduzir a pulsação da nova cidade, Guilherme de Almeida lamentava a irrelevância da produção nacional, mais bem representada por um reclame da Casa Alemã, com “cenários bonitos e grande nitidez”, do que por seus longas-metragens canhestros.

As versões de Guarani “com italianos nus, tingidos de azeitona e enfeitados de pena, como na ópera” ganharam sua pena irônica.

“Nos anos 1920, não havia nada no Brasil como o que o Guilherme de Almeida fazia”, atesta Donny Correia. “Havia a revista Cena Muda, mas ela essencialmente traduzia o filme para a linguagem do conto, uma vez que os brasileiros estavam mais habituados a ler histórias do que a assistir aos filmes.

Uma fotografia autografada de Walt Disney, autor de Fantasia. Foto: Acervo.

E a Cinearte publicava curiosidades sobre os atores hollywoodianos. O poeta transformou sua forma de observar os filmes, sem preconceito em relação ao cinema americano, conforme a coluna evoluía. E criou uma metodologia própria.” Era um cinéfilo com grande vivência.

Em Memórias de um Fã, conta como, no sobrado de uma tipografia, “no terceiro outono do século XX”, testemunhara, sobre um lençol branco esticado na parede, uma lanterna mágica a projetar algumas vistas fotográficas paradas de Vichy. E depois, em São Paulo, gastou cem réis para ajeitar os olhos em duas lentes e ver acender-se, dentro do aparelho intitulado bioscópio, uma luz sobre uma bailarina “com pernadas atrevidas de can-can”.

Sobre um clássico de 1927, Aurora, não tem dúvidas. O diretor F.W. Murnau, a quem ele atribuíra, em Fausto, a condição de “autor”, capaz de fazer dos filmes “brinquedos inteligentes e sóbrios, de criança prodígio”, inventara o cinema. “Murnau desprezou o gesto”, escreveu em maio de 1928.

“Gesto, bem entendido: mímica falante, que sublinha, auxilia e completa a palavra. Não há gestos em Aurora. Há movimentos. Movimentos essenciais, de massas conjuntas. Murnau justifica a etimologia de cinema: o kine grego é a sua essência. Põe o cinema no seu lugar. Aurora é o filme silencioso.” 

Ele vinha de buscar na nova arte uma unicidade distante do palavrório. O paulistano ia então mais ao teatro que ao cinema, considerado diversão inferior. Os espectadores, ademais, precisariam entender os letreiros, e a cidade então contava com mais de dois terços de analfabetos em sua população.

Eis por que, nas salas de projeção, havia um ruído constante de gente a ler para os outros, em voz alta, os diálogos entre os personagens. Por vezes, as orquestras que acompanhavam a projeção estragavam sua beleza.

Aurora, essencialmente um filme mudo, foi o primeiro da história, contudo, a usar uma trilha sincronizada, capaz de eliminar esses problemas, mas o feito não teve reconhecimento de público. Naquele ano, os Estados Unidos lançaram o primeiro filme falado da história, O Cantor de Jazz, e a perfeição como todos a reconheciam começou a decair.

Para Guilherme de Almeida, malgrado a chegada do som, o cinema deveria ser sempre definido como a “arte do movimento silencioso”. Eis por que o crítico via a sala de projeção como um lugar para meditar, não para abrigar conversas.

A publicidade de Metrópolis. Foto: Acervo.

Suas enquetes com o leitor sobre a propriedade do “cinema falante” foram extraordinárias. Muitos que as responderam (e que também ridicularizaram a censura aos beijos nos filmes) concordaram com o poeta. As palavras, no cinema, seriam redundantes para a arte. Em 1931, o crítico aplaudira Luzes da Cidade, de Charles Chaplin, por justamente rejeitar o som.

O pesquisador Donny Oliveira conta que este livro buscou, em primeiro lugar, publicar todas as críticas em que o autor se referisse ao cinema brasileiro. Com isso, os organizadores quiseram desfazer a impressão de que ele desgostasse ou, pior que isso, trabalhasse contra a produção nacional (Guilherme de Almeida fez argumentos para filmes importantes da companhia Vera Cruz, como Tico-Tico no Fubá, de 1952, indicado ao Festival de Cannes).

E seu outro objetivo foi o de demonstrar como o poeta conseguiu detectar no calor da hora, em vários filmes, sua futura condição de clássico. 

O Encouraçado Potemkin, para o crítico, foi “um filme de verdade”, que “inventou a História” na escadaria de Odessa. Metrópolis, de Fritz Lang, versejou o “poema da máquina”. Sua aceitação para o cinema falante ocorreu quando este se mostrou “um outro” cinema, capaz de ser, a um tempo, “música, pintura, escultura, poesia, arquitetura, teatro, dança”.

A animação Fantasia o fez fã de Walt Disney, que lhe mandou uma foto autografada. Viu muitos acertos em Cidadão Kane, ao contrário de seus contemporâneos, como o escritor argentino Jorge Luis Borges. Para o brasileiro, o filme era um laboratório “do contra”, às vezes pedante, ao qual seria preciso aguentar firme.

“Evidentemente, muita coisa não deu certo no primeiro filme de Orson Welles. Ele é, sem dúvida, uma obra primeira, mas não uma obra-prima”, escreveu. Contudo, ao final da crítica, foi capaz de reconhecer que sua fórmula ainda haveria de, um dia, “firmar-se para depurar o cinema”. 

***

Por Rosane Pavam. Publicado originalmente na edição 906 de CartaCapital, com o título “Luzes da cidade.”

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