Minhocão: entre o sonho do Highline e o planejamento de Cheonggyecheon, falta olhar para a cidade como um todo

Os defensores de ambos os lados têm bons argumentos, que se baseiam, de um modo geral, no ponto de vista que se adota.

Os que querem a derrubada estão pensando, de um modo geral, embaixo. Ou seja, na parte da cidade que o viaduto destruiu: a avenida São João e a General Olímpio da Silveira, eternamente úmidas, escuras e barulhentas, desestimulando a convivência. destruindo negócios e gerando insegurança.

O morador de rua Wlademir Delvechio, 33, em sua "casa", embaixo do Minhocão, na região central de São Paulo. Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress

Os que querem o parque estão pensando, de um modo geral, em cima. O viaduto já atrai, sem nenhum equipamento, milhares de pessoas durante a noite e nos finais de semanas. Eles fazem aula de yoga, correm, passeiam, levam os filhos. O projeto de transformar essa estrutura num parque inspira-se, entre outros, em alguns parques suspensos de outros países, ambos maravilhosos e, em alguma medida, na falta de confiança em um projeto alternativo.

O Minhocão funciona como área de lazer para os habitantes da região. Foto: Evelson de Freitas / AE.

Vamos dar uma olhada nesses projetos de outras cidades, para ver se há algo que pode ajudar a tomar decisões por aqui:

Highline

Em Nova York, o Highline foi criado a partir de um movimento de pessoas que se juntaram para evitar que uma linha de trem abandonada fosse destruída. Criada em 2003 a ONG, o “Friends of the Highline”, conseguiu mobilizar recursos privados e públicos para criar um parque original e agradável em 2009, que já é o segundo maior destino turístico da cidade.

A ONG, o “Friends of the Highline”, conseguiu mobilizar recursos privados e públicos. Foto: Iwan Baan / Arch Daily.

O processo não foi simples, porém. Entre a primeira audiência pública e o lançamento, foram feitas inúmeras discussões, um concurso de ideias com mais de 700 participantes e um concurso de design com 51 concorrentes e campanhas de engajamento que duraram anos e geraram milhões de dólares em doações. A cidade mediu e acompanhou cada resultado, com mudanças no zoneamento, tornando o Meat Packing Distric, um bairro histórico, de interesse cultural, e na lei de outorga onerosa para satisfazer a interesses de quem via na manutenção da via elevada uma possibilidade de prejuízo.

Coulée Verte

Em Paris, a Coulée Verte, que era chamada de Promenade Plantée também aproveita uma linha desativada para criar um espaço público maravilhoso, inaugurado em 1993. Embaixo, lojas e galerias de arte, em cima, um jardim, que segue por quilômetros em meio aos prédios, sempre com um desenho diferente.

A Coulée Verte aproveita uma linha desativada para criar um espaço público. Foto: Like a Local / Paris.

Coulée Verte, ao nível da rua, Paris. Foto: Parisianist.

Ambos são lindos e inspiradores. Mas têm pouco a ver com o nosso Minhocão. A primeira diferença é que ambos eram linhas férreas, que não passavam exatamente pela área central da cidade, mas a maior diferença tem a ver com a configuração dos viadutos em relação à cidade.

O Highline e a Coulée Verte não seguem o curso de uma avenida. O Highline  corta as quadras ao meio. Isso quer dizer que, ao contrário do Minhocão, ele não cria uma sombra sobre a rua que segue abaixo. A Coulée Verte  segue ao lado de uma avenida, mas integrada à vida da rua, pois parte de suas arcadas acomodam lojas e galerias de arte, que, essas sim, dão para a calçada, criando uma boa interação visual com os que passam.

Cheonggyecheon

Para encontrar um paralelo com o Minhocão, talvez seja melhor irmos até Seul. Ali, vivia um primo do Minhocão, o grande viaduto Cheonggyecheon, tão feio quanto difícil de falar, com 5,8 km de extensão e quase 170 mil carros por dia, mais de duas vezes e meia o movimento do viaduto paulistano. Em 2002, após um movimento popular, o então prefeito Mung-Bak Lee encampou a ideia: “Vejo uma cidade para as pessoas e não para os carros”.

Para encontrar um paralelo com o Minhocão, talvez seja melhor irmos até Seul. Ali, vivia um primo do Minhocão. Foto: IAU îdF.

Após 2300 visitas e 1900 reuniões (sim, esse é o número – nada acontece por acaso), foi batido o martelo num projeto e o monstrengo veio abaixo em 2005. Em seu lugar, um espaço público agradável, um princípio de tratamento das águas do rio que corria abaixo, a redução do calor no centro, a valorização imobiliária do entorno. Para surpresa de muitos, o trânsito não colapsou. Com as alternativas de transporte público e capilarização dos trajetos, o centro de Seul melhorou.

Perimetral

Também poderíamos olhar para a Perimetral, no Rio de Janeiro, que veio abaixo em 2014 e possibilitou a ligação visual da cidade com o mar, novamente.

A orla do Rio ainda não se recuperou de décadas de iniqüidade, mas surgiram vários espaços públicos de qualidade, como a simbólica Praça Mauá, onde está o Museu do Amanhã, com quase 100 mil visitantes por ano e a inspiradora Orla Conde, que permite caminhar ao longo da orla marítima.

A comparação com outras cidades revela que os bons exemplos foram muito discutidos mas muito bem implementados

A validade de ver exemplos de outras cidades é que isso permite ver que não há soluções fáceis. Há que se formar grupos, comitês entre as secretarias, promover conversas com a população, propor métricas e avaliar resultados.

A Perimetral, no Rio de Janeiro veio abaixo em 2014 e possibilitou a ligação visual da cidade com o mar, novamente. Foto: Prefeitura do Rio de Janeiro.

Também é importante saber que as soluções não viajam facilmente, mas é possível pelo menos testar ideias.

É interessante também sabermos quem pagou por tudo isso. Ao contrário do exemplo da Promenade Plantée, que foi liderada desde o início pelo poder público, o High Line não só partiu de uma iniciativa popular como sobreviveu enquanto grupo de pressão graças aos financiamentos privados. Esses financiamentos permitiram manter uma equipe dedicada durante anos, até que se tomasse a decisão de investir recursos públicos para a construção.

Assim, pode-se dizer que o dinheiro privado serviu como catalisador do projeto até que houvesse uma certeza política que refletisse o desejo da sociedade de investir numa determinada direção.

A simbólica Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro, onde está o Museu do Amanhã. Foto: Prefeitura do Rio de Janeiro.

Não menos importante do que isso é o bom uso das métricas. A exemplo do que é feito em outras iniciativas da cidade de Nova Iorque, existe uma aparente clareza sobre o que deve ser medido: visitação, investimento, valor patrimonial, retorno, imposto predial, são dados quantitativos que servem para demonstrar (ou não) a viabilidade e o resultado do empreendimento.

Em todos os casos, porém, uma constante. O resultado veio de uma definição implícita ou explícita de um “projeto de cidade”, ou o que essas cidades queriam ser.

Para ter um jardim em cima, é preciso ter uma cidade embaixo

Projeto para o Minhocão, no concurso promovido pela Prefeitura, em 2006.Alguns poderão argumentar que embaixo do Minhocão não há um rio que poderia aflorar e se transformar num espaço público lindo e nem o mar do outro lado. É verdade, mas embaixo do Minhocão, há pedaços de cidade que eram lindos e que foram tapados pelo monstro de concreto.

Outro argumento contrário à demolição é o de que, se fosse demolido, provavelmente teríamos uma avenida feia em seu lugar, tão sem graça quanto uma av. Rio Branco ou uma av. Tiradentes, o que, evidentemente, não traria nem vitalidade nem beleza para o local.

Outro ainda sustenta com razão que uma possível valorização da área talvez expulsasse pessoas que conseguiram morar lá justamente porque o aluguel ficou barato com a deterioração do local.

Todos esses argumentos são poderosos e respeitáveis, mas todos poderiam ser enfrentados se tivéssemos a disposição suficiente para encarar pelo menos metade das discussões que aconteceram em Seul.

Poderíamos discutir um projeto urbano de qualidade que preservasse algo do bulevar que existia antes da construção do Minhocão e incorporasse ciclovias, calçadas generosas e árvores. Poderíamos discutir um projeto de transporte que criasse um VLT, aqueles bondes modernos, silenciosos ao longo da avenida. A discussão do trânsito Leste-Oeste precisa ser enfrentada, mas de qualquer modo, o Plano Diretor já decidiu pelo fim do uso do elevado, de uma maneira ou de outra e vai ser útil repensar a mobilidade com outras alternativas que não destruam o centro.

Poderíamos também discutir maneiras de preservar parte da agradável experiência de caminhar num lugar suspenso, acima dos carros. Um concurso feito em 2006 propunha soluções assim, em que pedaços do elevado poderiam continuar existindo, oferecendo aos que querem “fugir” da cidade um escape elevado, com paisagismo e acesso, mas sem ofender os prédios e liberando a maior parte da rua da sombra do Minhocão.

Poderíamos também fechar um plano de aluguel social, para garantir a permanência das famílias que agüentaram décadas de barulho e poluição em troca de um aluguel baixo e agora vão ver os preços subirem – com parque ou com a demolição, o preço deve subir. É justo e necessário que não tenham que sair na hora que o imóvel se valoriza. Há mecanismos para fazer isso, basta pensar.

Imagem ilustrativa de como o Minhocão poderia ser se transformado em parque. Imagem: Associação Parque Minhocão.

Provavelmente, não teremos nada parecido com esse debate, apesar da qualidade dos interlocutores de ambos os lados. É uma pena porque a cicatriz que o Minhocão representa na cidade mereceria um remédio à altura e uma boa discussão de projetos, não só do elevado, mas da cidadde em torno dele.

O debate incompleto com soluções binárias – destrói, não destrói – provavelmente vai nos deixar no meio do caminho entre os lindos parques em vias elevadas e a radical e brilhante solução de Seul.

Talvez o argumento decisivo  para uma solução mais radical, que envolvesse a derrubada da estrutura ou de grande parte dela, seja justamente a questão simbólica: a cicatriz criada pelo Minhocão no centro é uma marca de um período em que mais importante do que garantir a qualidade da vida das pessoas era garantir a circulação dos carros.

A cidade mudou e vai ser preciso mostrar que somos capazes de criar uma solução que seja melhor do que as que estão postas na mesa. Na pior das hipóteses, um projeto urbanístico que mitigue os efeitos da sombra deletéria sobre a vida das ruas, abaixo do parque. Na melhor das hipóteses, um bulevar, com um parque linear para as pessoas andarem e pedalarem, com árvores, bancos e um transporte público silencioso, tudo no plano da rua, estimulando comércio e vida nas calçadas.

Entre olhar para cima e olhar para baixo, seria melhor olhar para a cidade como um todo.

***
Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. *Artigo publicado originalmente no seu blog Caminhadas Urbanas. 

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