O plano era simples: convidá-la a estar presente, no próximo dia 25 de janeiro – aniversário da cidade de São Paulo – para a instalação da placa. O local previsto é a calçada generosa da Avenida São Luís, no centro da cidade, onde as linhas e formas do mapa de São Paulo moldadas com as pedras portuguesas, ainda resistem ao cimento frio e cinza do novo padrão do passeio público da cidade.
Lembro bem quando começamos a pesquisar sobre a origem do piso e nos deparamos com uma reportagem da Folha de S. Paulo em que o título bradava “Era uma vez: paulistanos que resistem ao tempo”. Porém, mesmo aquilo que resiste um dia acaba por encontrar seu fim. E a hora da nossa querida Mirthes chegou para ela aos 87 anos.
Quando entramos em contato há alguns anos, ela foi só generosidade. Passamos a trocar mensagens, e assim descobri sua aptidão para a arte além das calçadas. Ela me contou que sua especialidade era esmaltação em cobre e que tinha fascinação pelas árvores. Me enviou (digitalmente) uma de suas obras sobre o tema.
Uma vez ela me disse que com o falecimento da irmã foi morar em Sorocaba com o sobrinho. Queria “alugar uma casinha, montar um ateliê e voltar a esmaltação, só pra viver mais um pouco e torcendo para o Brasil vencer essa guerra de corruptos”. Compartilhou comigo por inbox a publicação do seu perfil do Facebook onde mostra a sua sensibilidade para tratar de temas difíceis.
Mas a maior preciosidade que ela me deu foi a cópia (digital) de uma carta escrita a mão, onde ela traça o histórico da conquista do concurso do piso paulistano. Segundo ela, quando tentou patentear o desenho, um advogado sumiu com toda a documentação e ela teve que escrever a história de próprio punho para que não fosse esquecida.
Na última mensagem que trocamos, já durante a quarentena da pandemia, ela me disse: “Quando eu me instalar e essa praga acabar, quero que você venha aqui e traga seus amigos.”
Nesta mesma mensagem, pedi que confirmasse a grafia do seu nome, para não ter erro na placa. Foi então que ela me explicou:
“Meu nome é Mirtes dos Santos Pinto (nome do meu pai) quando comecei a trabalhar com esmaltação em cobre, passei a usar o nome de minha mãe e aí coloquei o h também (Nos quadro eu assino Mirthes Bernardes).
A calçada que virou um símbolo de São Paulo
Qualquer pessoa que caminhe pelo centro (e pelos bairros) vê o trabalho da Dona Mirthes. Uma história para lá de curiosa. Nos anos 1960, Mirthes Bernardes era desenhista da Secretaria de Obras do município quando o prefeito Faria Lima lançou um concurso para escolher um padrão de piso para a capital paulista.
E ela entrou na disputa. Rabisca daqui, rabisca dali… Considerou simples o contorno que tinha feito e não imaginava ficar entre os finalistas. Em 1965, a musa das calçadas paulistanas ainda não sabia que escrevia seu nome na história de São Paulo. A votação final foi feita com a aplicação dos desenhos na Av. da Consolação. Dá para imaginar a cena. Os outros concorrentes eram um desenho de grãos de café e o outro representava os pés caminhando. E… deu Mirthes na cabeça!
Foi uma festa. Desde então, os contornos que representam o mapa do estado de São Paulo passaram a simbolizar a maior cidade brasileira. Ou seja, um dos ícones mais conhecidos de SP é o desenho de uma calçada. E que desenho. Engenhoso e criativo. O calçamento ficou conhecido como “piso paulista” e primeiro chegou à Av. Faria Lima e depois à Av. Amaral Gurgel. Para ganhar aos poucos toda a cidade. Os ladrilhos iam sendo produzidos por vários fabricantes e sua presença na paisagem urbana cresceu.
Foi além da calçada, tornando-se um padrão gráfico para os mais diferentes produtos. De camisetas a canecas. Fabricado em ladrilho hidráulico, o desenho é fácil de ser produzido e instalado. São apenas três peças quadradas que combinadas criam um padrão infinito. Uma peça é branca, outra peça é preta e a outra é preta e branca que se divide na diagonal. O efeito é magnífico. A oposição positivo/negativo revela um jogo de figura e fundo em que ora só se vê as formas brancas, ora as pretas. Genial.
Apesar do monumental sucesso, pelo que pesquisamos a Mirthes não ganhou um centavo com sua obra. Mas muita gente faturou em cima de sua criação. E ela, claro, deve se ressentir disso. Também pesquisamos sua paixão por São Paulo. Caminhar sobre suas calçadas geométricas deve ser uma experiência que a enche de orgulho. Pena que seu piso paulistano esteja tão maltratado atualmente. Poucas cidades do mundo têm um ícone cultural como esse para chamar de seu e deveríamos cuidar melhor dele.
Mirthes Bernardes está longe de ser um rosto conhecido da multidão. Mas deve ter todo nosso respeito e gratidão. O CalçadaSP sempre quis – e continua querendo – ser mais uma voz para que seu legado seja preservado e prestigiado, e que os paulistanos saibam quem é ela.
À Dona Mirthes (Barretos, 1934 – São Paulo, 2020), todo nosso carinho e admiração. Em sua memória, continuaremos pavimentando caminhos.
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Wans Spiess, uma das fundadoras do CalçadaSP, é mestranda na FAU-Mack e Diretora de Relacionamento da Cidadeapé, onde lidera o projeto Ruas para Mobilidade Ativa na Pandemia pela instituição. Edição: São Paulo São.