Quadro-negra na sala d’acasa, no Cosme Velho: preparação para o open house, que aconteceu na semana passada.
Foto: Ana Branco / Agência O Globo.
Os vínculos comunitários são tecidos diariamente na residência que Andreia e Lara compartilham com Bruno Rosostolato (economista), Elisabete Amorim (massoterapeuta), Micael Hocherman (diretor de fotografia), Sadhana Sokol (antropóloga), Thiago Saldanha (produtor cultural) e Washington Ferreira (produtor editorial), e que ganhou o nome de “acasa”. Logo na entrada, um cartaz aponta as regrinhas básicas: de “Tire seus sapatos” a “Traga coisas boas, leve coisas boas”. Dicas de boa convivência são espalhadas por todos os cantos. O lema, escrito num papel roxo, é “Ajude a manter todos os espaços limpos e harmônicos: se encontrar uma tarefa, ela é sua”. Na cozinha, um quadro mostra quem é o responsável pela reposição de produtos de limpeza, pela retirada da cesta de orgânicos, por fazer o pão de cada dia.
Para apoiar a gestão consensual do espaço, são estudados os conceitos da Sociocracia e do Dragon Dreaming, que visam uma organização não hierárquica, horizontal e colaborativa. Para completar, de 15 em 15 dias, os moradores d’acasa se reúnem num grupo de Comunicação Não Violenta (CNV), método desenvolvido pelo psicanalista americano Marshall Rosenberg, que apoia o estabelecimento de relações de parceria e cooperação com base na empatia.
— Morando conjuntamente, as fundações da casa não são as pilastras de concreto. São as relações. E, se as relações não estiverem bem, a casa desmorona — observa Thiago Saldanha, de 30 anos. — Viver de forma compartilhada é passar da lógica da escassez para a lógica da abundância.
Semana passada, o último morador a chegar foi Washington Ferreira, de 48 anos.
— Eu estava de saco cheio da individualidade. Vim em busca da coletividade, desse aprendizado — conta o baiano radicado em Minas Gerais, que há 12 anos morava num quarto e sala em Copacabana.
Massoterapeuta, a carioca Elisabete Amorim, de 30 anos, conversava com um cliente sobre a vontade de viver em comunidade quando ele comentou que era dono de uma casa fechada há dois anos, que não conseguia vender. Ela falou sobre a possibilidade de alugar a propriedade com amigos, esses amigos sondaram outros amigos, os interessados fizeram uma reunião e, em um mês, nasceu acasa.
— É um desafio diário, um resgate das relações que ficaram perdidas. Em grupo, você se depara com várias questões que fugiria se estivesse sozinha num apartamento. Os outros são nosso espelho. E isso acelera o processo de autoconhecimento — avalia Elisabete.
Nova-iorquina baseada no Rio, a antropóloga Sadhana Sokol, de 32 anos, concorda:
— Fácil, não é. Mas há um alinhamento que facilita a harmonia da casa.
Quando há conflito, tudo se resolve na base da conversa. Na roda de Comunicação Não Violenta ou no grupo do WhatsApp.
As dificuldades não impedem o encantamento pelo lugar. Há fila de candidatos a morador. Sábado passado, durante a abertura oficial d’acasa, ouvia-se repetidamente a frase “Também quero morar aqui”. Foi um dia de programação intensa, com “Meditação para o novo Brasil”, na sala de estar, e apresentação do grupo Tambores de Olokun, no quintal.
— Abrimos a casa para mostrar que é possível resgatar esse espírito comunitário mesmo habitando grandes centros urbanos. Existem muitos imóveis ociosos no Rio. Esperamos que o nosso projeto possa dar ânimo à criação de outras casas coletivas na cidade — explica Thiago Saldanha.
A inauguração da casa foi produzida por moradores e colaboradores, com contribuição voluntária de 300 convidados.
— Além de festas, promovemos workshops. Almejamos que um dia acasa seja autossustentável — diz Bruno Rosostolato, economista de 35 anos.
Moradores e agregados da Legalaje: Francisco Rath, Paloma Christiansen, Madalena Camões Godinho, André Felipe Bispo, e Marcela Santigo,
Fernanda Guimarães Bradaschia e Jimmy, o cão. Foto: Ana Branco / Agência O Globo.
A turma da Casoca: Natalia da Costa, André Perlingeiro, Ana Laura e Lucas Macedo e Adriana Pereira de Almeida Salles.
Foto: Ana Branco / Agência O Globo.
O alinhamento do processo de coliving com projetos de educação é a essência da Casoca, comunidade urbana criada há seis meses numa simpática vila na Tijuca. Dos seis moradores, quarto são educadores: Adriana Pereira de Almeida Salles, Ana Laura Macedo, Marcela Rosolia Matis e Mayara Gonçalves Vieira. Jovens de 20 e poucos anos, elas trabalham numa creche parental no Flamengo e num projeto de educação infantil no Cosme Velho.
— Começamos a desenvolver um projeto para trabalhar em casa também, pelo menos por dois dias na semana — conta Adriana. — Por que não trazer crianças aqui da Tijuca para a nossa casa e dividir com elas a experiência de se viver numa comunidade?
Os outros dois moradores são o cineasta Lucas Macedo, de 24 anos (que vem a ser irmão de Ana Laura), e a professora de ioga Natalia da Costa, de 26 (seu namorado, o animador André Perlingeiro, de 36 anos, é o agregado oficial da Casoca).
— Fizemos um casocamento ao entrar na casa. No ritual, lemos as nossas intenções — conta Ana Laura.
— E cada um plantou uma árvore na hortinha que temos no terraço — completa Adriana.
A Casoca tem cinco quartos: dois são individuais, dois são compartilhados e um é usado como sala de terapias. Todos os ambientes foram decorados com móveis doados ou reaproveitados. Paletes fazem as vezes de sofás e gavetas encontradas em caçambas, na rua, foram forradas com chitas para virar módulos de estante. Os seis dividem o aluguel e todas as contas, penduradas numa cortiça. Outro quadrinho elenca os responsáveis por cada espaço da área comum — cozinha, banheiro, sala.
— A cada mês, um de nós se candidata a ser guardião do dinheiro, guardião da limpeza, guardião da comida. A ideia é que seja rotativo para todo mundo experimentar tudo. Já tiveram alguns perrengues, claro, principalmente com comida. Dois meses atrás, a casa ficou totalmente desabastecida — conta Ana Laura. — Eu tive um conflito e, como estava lendo Paulo Freire, que fala da muito da mudança através da revolta, escrevi um texto desaforado no nosso grupo do WhatsApp. Deu certo: fizemos reunião na mesma noite e resolvemos o problema.
Ana Laura conta a história enquanto é atentamente observada pelos demais moradores.
— Por mais que pareça complicado, com várias reuniões e divisões de tarefas, o objetivo da comunidade é simplificar a vida — ela diz.
Adriana pede a palavra:
— Te fortalece muito dividir as questões diárias com outras pessoas. É uma força mesmo, diante de tantos problemas que estamos vivendo no país. A sensação é que podemos crescer juntos.
Quadro de divisão de tarefas da Casoca. Foto: Ana Branco / Agência O Globo.
O grupo se uniu após viver uma experiência em Piracanga, ecovila localizada em Itacaré, na Bahia. Cada um passou uma determinada temporada lá (de um a seis meses).
— Os jovens saem de Piracanga empoderados, com um potencial de criação muito grande e com vontade de mudar o mundo mesmo — empolga-se Ana Laura.
Líder da Comunidade Tribo Inkiri de Piracanga, Angelina Ataíde esteve no Rio para uma palestra, mês passado, e ficou orgulhosa quando soube da criação da Casoca.
— Em Piracanga, além de vivermos em comunidade, oferecemos oportunidades para que outras pessoas venham para cá e tenham uma experiência de vida comunitária. São práticas muito transformadoras — enfatiza Angelina. — O que me encanta muito é a energia e o potencial de transformação dos jovens. O processo para eles é muito rápido e eles têm muita força de vontade para colocar em ação. A Casoca é um exemplo de comunidade urbana que nasceu inspirada por pessoas que passaram por Piracanga e hoje vivem seu sonho de comunidade na cidade inspirando mais pessoas nesse processo de transformação. A base de todo esse movimento de comunidades intencionais e casas compartilhadas é um despertar da humanidade para o valor da união. Essa é a base de uma nova humanidade que já surgiu e está se consolidando cada vez mais em diversas partes do planeta — diz.
Diretor do documentário “Ecovilas Brasil”, o carioca Rafael Togashida tem uma teoria singular para o movimento:
— A primeira grande virada acontece quando a humanidade deixa de ser nômade e começa a criar assentamentos praticando a agricultura. A segunda é a Revolução Industrial. E a terceira é agora, a era da colaboração. A primeira aconteceu em milhares de anos, a segunda em gerações e a terceira vai acontecer muito rápido, estima-se que em 20 a 30 anos. Na verdade, já está acontecendo.
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Joana Dale em O Globo.