— Não sei bem os passos, você me ensina?
— No sabes bailar el tango?
— Sou brasileira, mas danço tudo, aprendo rápido. Me ensina uns passos que eu pego – falei toda sorridente, aquele clichê tropical de achar que basta a boa lábia para quebrar o gelo.
— No. Así no se puede.
E o portenho, na faixa dos 30 anos, bonito mesmo com o cabelão juba penteado para trás, foi me levando de volta para a minha cadeira. Estávamos no meio do salão ainda meio vazio, todo mundo olhando, e aquele homem de camisa aberta no peito ia me devolver para a cadeira. Que que é isso? De jeito nenhum, Gardelon. A mão que estava na minha cintura tinha subido para o meio das costas, sutilmente me empurrando.
Apelei. Agarrei no braço dele e murmurei, entredentes: “Por favor, me deixa tentar”. “Tango es un tema sério”, ele me disse, apontando a cadeira. “Tem nada a ver isso aí. Eu pago. Te pago 20 pesos, mas não vou ser devolvida”. O tempo passando e nós naquela situação ridícula. Ele continuava me empurrando, eu empurrava de volta. Quase enterrei as unhas no braço dele. No fim ele dançou comigo. Na sua testa estava escrito “mujer loca”, mas uma música, ao menos, ele dançou.
Pode até pintar uns constrangimentos (esse aconteceu mesmo), mas dançar, para mim, sempre foi a alegria real. Um jeito Tony Manero de enxergar algum sentido da vida no sábado à noite – ou fugir dela, já que encarar a realidade nunca foi o meu forte. Desde menina, quando entro numa pista não saio nunca mais. Não é preciso um par, nem uns goles a mais, embora tudo isso seja bem vindo. Mexer o corpo, se deixar levar pela música, dar um gritinho interno quando toca aquela favorita. É a celebração. As inquietações, por uns minutinhos ou horas, ficam para trás.
É a melhor desforra. Nesta quarentena em que estamos vendo tanta dor e dúvida, dançar abre o sol naquele instante negro do meu dia em que, depois de ler as notícias e sentir um desejo incontrolável de matar os sem caráter, resolvo seguir o Nereu do Trio Mocotó, que cantava, derramando malícia no pandeiro e na voz rouca: “Extravasa, extravasa”. O jeito é extravasar na varanda, com a porta fechada para o marido, grudado no computador, não reclamar do som. Não há preguiça maior do que a desses chatos que vivem dando conselhos, mas vou me atrever aqui a uma sugestão: quando a alma estiver pegando fogo, em vez de ir chorar na cama que é lugar quente, experimente botar um som e sacolejar até as últimas consequências.
Ou, se a ideia é se aprimorar, aproveite que esta pandemia é a era da autossuficiência e já estamos colados no youtube aprendendo a pintar o cabelo, fazer arroz soltinho, cortar a franja, e sintonize numa aula de dança. Pode se agarrar apaixonadamente a uma vassoura, pegar a cadeira para se apoiar na hora da voltinha, até subir nela à la Liza Minnelli. Life is not a cabaret agora, meu chapa, mas na vida mascarada em que estamos, por que não liberar uns sonhos?
Lá fora é preciso manter a distância de no mínimo um metro e meio do outro, jamais expor bocas e narizes, e fico pensando se vamos voltar logo para a deliciosa farra de uma pista lotada, ou para a delicadeza do dois para lá, dois para cá, os corpos coladinhos, o calor anunciando sensações que a gente não consegue dizer. Se estamos tão autossuficientes, desaprenderemos a lição que é dançar junto, essa metáfora óbvia da existência? Da importância de se adaptar ao outro, entender a cadência, o suingue levando a vida. Uma aula de convivência, como me explicou anos atrás, com seus erres de sotaque italiano, a Dona Madalena, uma senhora de uns 70 e muitos anos que se maquiava com longos cílios postiços, botava o salto 15, ajeitava a peruca platinada e todo sábado se acabava no baile: “Filha, eu não complico: você samba, eu sambo. Você rumba, eu rumbo”.
E como fica a dança do acasalamento? Tudo bem que já vem mudando faz tempo, os Tinders dispensaram a lenga lenga do “você vem sempre aqui?”, mas na pista sempre existiu o ritual da troca de olhares e sorrisinhos com o drinque na mão, o chega junto, mão na mão, o enrosco gostoso. Agora que é cada um no seu quadrado, até na praia a sedução está ameaçada de extinção. Nas previsões de futuro próximo que os sujeitos estão se arriscando a fazer, vieram com uma ideia de no verão cada pessoa ficar exposta ao sol em gaiolas transparentes de plexiglass para ninguém se aproximar. Se aqui na Itália, que tem praias com cercadinhos (os lidos), a ideia já é de jerico, imagino no Rio, onde revelar o corpo é o convite imediato para o vizinho oferecer te besuntar de creme, ou combinar o samba para a noite, como seria? Vai acabar a inspiração para canções, novidades de comportamento, para novos ritmos dançantes. Não sou apocalíptica, mas agora que acabaram com o biscoito Globo, pressinto que vão levar também uns rituais do planeta.
Sim, sucedem muitas coisas. O verão talvez não seja o mesmo, os romances também não, mas as músicas continuam aí, embalando a gente, salvando uns instantes, e nos nossos quadrados vamos resistir dançando. Neste mundo em que não podemos mais respirar sem sentir medo, lembro do Manuel Bandeira, que passou anos sofrendo do pulmão e escreveu que, se não dá para tentar mais nada na vida, a única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
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Cristina Ramalho, brasileira radicada na Sicília é escritora, roteirista e jornalista com passagem pelos principais veículos da imprensa. O texto faz parte de uma série de crônicas que a autora tem produzido como um diário da quarentena na Sicília, em seu blog Ramalhetes.