No Shoshi Delishop, o prazer é observar a rua e testar comidas e conversas diferentes

Depois de caminhar entre gente, lojas de som e confecções, nóias, monumentos, camelôs, ruas, calçadas, prédios históricos e parques do século XIX, nada como chegar ao Bom Retiro para almoçar e pensar na cidade.

No bairro que sempre foi dos imigrantes, vamos sempre ao Shoshi Delishop, um pequeno e delicioso restaurante judaico na rua Correia de Melo.

O dono e seu filho recebem quem chega com uma atenção individual e um sotaque forte. O humor dos dois parece fazer parte de um vaso comunicante. Dependendo dia, é melhor evitar um dos dois e aproveitar a hospitalidade do outro.

Sentamos numa das duas mesas ficam quase na rua, numa fronteira mais ou menos fluida entre a calçada e o interior. Recebemos imediatamente nossa saladinha de repolho, temperadinha com limão e azeite, uma cortesia bem vinda num dia quente. A cerveja gelada chega logo e passamos a acompanhar o movimento.

Quem passa cumprimenta, e é cumprimentado, uns com intimidade, outros com deferência: — “bom dia, senhor”, o sotaque forte saúda até o homem desconhecido que parou o carro na zona azul sem deixar cartão.

Um casal de coreanos – seriam coreanos mesmo? —  pede uma sobremesa, um pudim de leite para comer ali fora, na calçada. O dono faz questão de explicar que o doce é feito “sem leite condensado, numa receita antiga”. E aproveita para se lembrar de uma ex-freguesa que pediu a receita candidamente e, ao receber a resposta negativa, chamou-o de “feio” e nunca mais voltou.

De repente ele pára: uma mulher muito bonita entra no restaurante, sozinha. Não sabemos se o seu inesperado silêncio é uma homenagem à beleza da mulher ou à fidelidade da cliente. A dúvida se dissipa em breve: “a única coisa que não pode quebrar nesse restaurante é a maquininha do cartão”.

É uma blague, claro, porque logo chegam os maravilhosos gefilte fish, aqueles bolinhos de peixe com gosto de leste europeu num outono antes da neve chegar. A raiz forte potencializa o sabor. O almoço já está ganho.

Dois homens entram falando algum idioma que leva aos ouvidos a mesma sensação que a raiz forte à língua – será iídiche? – passam por nós e vão direto para uma mesa no fundo. Parecem discutir algo muito importante, mas pode ser que eles estejam apenas resolvendo quem vai sentar perto da janela…

Os varenikes que se derretem na boca e a salada grega levantam a questão das identidades nacionais. O que veio de onde? A mistura do sabor polonês com o cheiro do mediterrâneo nos faz pensar que nada é tão original que não tenha tido influência de outros. Por exemplo, o tomate e a batata sul-americanos deram graça à salada e ao pastelzinho europeus.

O hibridismo cultural ganha contornos antropofágicos quando duas moças bolivianas (peruanas?) passam pela calçada, bem em frente à Oficina Cultural Oswald de Andrade, um dos homens que repensou nossa herança e dessacralizou as noções de cultura nacional. Olhamos para os pôsteres de Jerusalém nas paredes e nos calamos diante do peso de tantas histórias num lugar só.

A moça bonita se levanta e se despede de todos. Os homens que falam raiz-fortês se levantam e não se despedem de ninguém. Nós nos levantamos e ganhamos um “eu amo vocês”, cheio de sotaque e de afeição, e um toque no ombro.

Depois do almoço multicultural, num bairro multicultural, entramos no centro cultural em frente. Sentamos num banco ao sol, enquanto os bailarinos de alguma companhia de dança municipal descansam de seu cansativo ensaio da tarde de sábado. Eles não falam muito. Mas se percebe que falam português com sotaques de vários estados.

Arrastamo-nos de volta para o espigão, num passo lento, calados e felizes, pensando em varenikes, sotaques e cidades possíveis.

***
Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. Artigo publicado originalmente no blog Caminhadas Urbanas do Estadão. 

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