Novo olhar para a história da mulher paulista

A imagem das senhoras da elite paulista do século 19 difundiu-se no imaginário brasileiro — apoiada em relatos de viajantes como Saint-Hilaire ou em cartas da educadora alemã Ina Von Binzer — como reclusas, sem educação formal, só pensando em luxo e festas e tendo à sua volta escravos. Trabalhos recentes, como de Vaz, Algranti e Nazzari, têm apontado, porém, o importante papel das mulheres da oligarquia rural paulista na gerência de suas fazendas pelas longas ausências dos maridos.

Na elite, a autoridade pública e formal do homem tinha como contrapartida a participação estratégica da mulher na família. As brancas eram valorizadas como fulcro do projeto social de dominação portuguesa: imagem de grande dama, que exercia “limpeza de sangue”, socializadora dos filhos e dos escravos, assegurando a formação, harmonização e perpetuação dos valores familiares.

Elas também comandavam atividades produtivas, enquanto o homem abria novas fronteiras ou ocupava cargos públicos, e compartilhavam o status do marido no controle da casa. Dessa forma, as paulistas das elites tiveram função decisiva na continuidade dos clãs e nos bastidores do desenvolvimento do território.

Um exemplo no estado de São Paulo é a chefia feminina de unidades domésticas, com fronteiras abertas desde o século 17, por ação das bandeiras e tropeirismo; no século 18, pela mineração e produção de açúcar; e no século 19, pelo café. Tal fenômeno atingia todos os extratos sociais, nas zonas rural e urbana, mesmo que mulheres só ficassem sozinhas no campo quando os filhos estavam em idade produtiva, ou se contassem com escravos e/ou agregados.

No livro Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, Maria Odila Dias assinala que, entre o fim do século 18 e início do 19, com a urbanização da capital paulista, cresce o número de mulheres pobres: escravas e forras, sobrevivendo do artesanato caseiro e do pequeno comércio ambulante, tornam-se parte da economia escravista e da concentração da terra. Com o fim da escravidão, veem-se expulsas do centro para a retaguarda da cidade.

Voltando um pouco mais no tempo, no fim do século 17, já se destacava a liderança das mulheres no artesanato doméstico, enquanto os homens se ocupavam de transporte e comercialização, o que os levava a partir para o sertão ou a viajar como intermediários de firmas. Por isso, as mulheres assumiram a administração dos bens, como a roça e o gado. Ao mesmo tempo, mulheres sós, chefes de família, ocupavam posições de lavadeiras, quitandeiras, roceiras e comerciantes.

Essa realidade teve a marca de uma organização familiar matrifocal, isto é, de laços primários bastante fortes entre mães e filhas, embora houvesse certa tensão em movimentos cíclicos, já que filhas e netas se afastavam do lar para casar, formal ou informalmente e, muitas vezes, retornavam trazendo filhos ilegítimos.

As estradas de ferro transformaram o acesso a gêneros alimentícios, e o comércio ambulante foi recuando para os limites da pobreza urbana. Com a urbanização, a cidade de São Paulo viu o aumento do número de mulheres pobres gravitar às margens da classe dominante e conviver com vizinhas mestiças, pardas, mulatas, forras, o que se reproduzia nas maiores vilas e localidades do interior paulista.

No campo, a vida da mulher também não era fácil, acompanhando as atividades do marido, com filhos muito pequenos, que ainda não podiam contribuir. Elizabeth Kuznesof, na obra Nem senhores, nem escravos – os pequenos agricultores em Campinas, considera que “o trabalho da mulher era tão importante quanto o do homem e frequentemente se sobrepunha a ele. (…) Ambos, homens e mulheres, trabalhavam nos campos com divisões dos tipos de trabalho dependendo mais da idade e força que do sexo”.

Maria Odila sustenta que, por conta de fenômenos demográficos e da falta dos esposos, as mulheres tornaram-se fundadoras de capelas, curadoras, negociantes, administradoras de fazendas e se firmaram como líderes políticas locais. Essa liderança lhes exigia coesão e harmonização, estampadas no estereótipo de matriarcas hospitaleiras e generosas. Paralelamente, houve a influência de senhoras prepotentes, em decorrência do status familiar: embora não exercessem cargos na administração pública, na qualidade de proprietárias e herdeiras, elas se intrometiam na política. Exemplo claro é o da marquesa de Santos, no Primeiro Império.

Com a modernização da República, são postas em xeque as relações sociais senhoriais, baseadas em vínculos mais personalistas, de submissão e favor. Tais relações, que pressupunham laços de compadrio e de solidariedade, vão sendo consideradas inadequadas ao mundo moderno e substituídas por relações sociais burguesas. Aos poucos, desaparece aquela mulher que administrava a fazenda como uma verdadeira empresa. Os fazendeiros passam a ter casas nas cidades, sobretudo em São Paulo, onde ficavam com a família a maior parte do tempo.

Em “Mulher e família burguesa”, no livro História das Mulheres no Brasil, Maria Ângela d’Incao observa: “… a emergência da família burguesa, ao reforçar no imaginário a importância do amor familiar e do cuidado com o marido e com os filhos, redefine o papel feminino e ao mesmo tempo reserva para a mulher novas e absorventes atividades no interior do espaço doméstico. (…) Considerada base moral da sociedade, a mulher da elite, a esposa e mãe da família burguesa deveria adotar regras castas no encontro sexual com o marido, vigiar a castidade das filhas, constituir uma descendência saudável e cuidar do comportamento da prole”.

Vale ressaltar, contudo, que a marca da mulher paulista que carregava o fardo da ausência do marido, que estava nas fronteiras, e, embora na retaguarda política, assumia o comando das atividades produtivas e domésticas, ficou registrada em algumas matriarcas das elites urbanas do século 20. Figuras como D. Veridiana Valésia da Silva Prado (1825-1910), D. Maria Angélica de Souza Queiroz Aguiar de Barros (1842-1929), D. Olívia Guedes Penteado (1872-1934) e D. Yolanda Penteado (1903-1983) lideraram a urbanização paulistana e apoiaram movimentos artísticos e culturais. Suas trajetórias reverberam até hoje, gerando reflexões sobre dependência e autonomia; resignação e realização; submissão e protagonismo.

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Maria Alice Setubal, a Neca Setubal, é formada em ciências sociais pela USP, com mestrado em ciências políticas pela mesma instituição e doutorado em psicologia da educação pela PUC-SP. Autora de livros e artigos, preside os conselhos do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e da Fundação Tide Setubal. *Artigo publicado originalmente no El País.

 

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