O título da matéria já sugere quais seriam as explicações que teriam motivado os altos índices de acidentalidade: “Sinalização, condutores e pedestres falham em via líder em acidentes fatais”.
Matérias dessa natureza buscam desde sempre explicações no inexplicável. É reducionismo avaliar o problema da insegurança viária apenas buscando explicações nos fatores afetos à engenharia de tráfego e ao comportamento de condutores e pedestres. Há algo anterior que condiciona e delimita análises dessa natureza: a maneira como a cidade está disposta e como ela foi planejada (não ter planejamento é uma forma de desconstruir cidades).
No mesmo jornal, poucas páginas adiante, a Folha conta um pouco a história da Avenida Paulista, e de como essa artéria sofreu radicais transformações ao longo de seus 125 anos. Enquanto em 1891 a avenida era ocupada por bondes a tração animal, charretes e cavalos, 85 anos depois (1976) ela era “alargada para dar mais espaço para os automóveis”, descreve a matéria assinada pelo jornalista Raul Juste Lores.
Uma cidade que se adequa ao modo de transporte individual motorizado produz, como consequência natural e óbvia, uma série de efeitos colaterais, sendo os mais visíveis os que hoje engrossam as graves estatísticas de mortos e feridos, descritos de maneira pueril pelo nome de “acidente”. Os “acidentes” de trânsito seriam, portanto, algo casual, fortuito, imprevisto, como ensina qualquer dicionário da língua portuguesa; e desta forma foram sempre justificados (e pior, aceitos) como danos colaterais do “progresso”, outra palavra que remete ao inevitável, ao irrefreável, algo determinado e impossível de ser detido (afinal toda cidade precisa progredir).
Foram necessários anos de tragédias no trânsito, somados a outros graves danos colaterais provocados pelo automóvel nas cidades, como a questão ambiental e a saúde pública, para que um movimento de questionamento desse modelo de cidade começasse a ganhar corpo. Hoje o automóvel tornou-se um grave problema urbano, bem diferente da forma como sua imagem foi construída em décadas, como solução ideal e moderna para a mobilidade nas cidades. Esse discurso não apenas sustentou sua imposição, como, por incrível que possa parecer, até hoje é usado para justificar sua prioridade no planejamento urbano das cidades brasileiras.
O questionamento do uso do automóvel como modo de transporte ganhou nos últimos anos uma faceta mais visível e, por que não dizer, mais humana: a destruição de espaços públicos de convivência. Como já apontava Jane Jacobs no livro “Morte e vida de grandes cidades”, a hegemonia dos automóveis provoca erosão urbana. A expansão do viário urbano para permitir a introdução contínua de mais e mais automóveis destruiu árvores, rios, calçadas, praças e parques. No caso da Avenida Paulista a matéria da Folha conta que jardins e marquises de prédios foram destruídos…
Foi preciso o apocalipse anunciado do aquecimento global para que as pessoas finalmente se dessem conta do suicídio que todos estávamos patrocinando sob o falso argumento da “mobilidade e progresso”. Graças ao excesso de carros temos hoje cidades economicamente inviáveis e com baixíssima mobilidade. Temos cidades doentes, inóspitas, segregadas.
Numa cidade torta, onde o automóvel é o rei, cenas de violência e exclusão serão comuns, por mais trágicas que sejam. O que não se pode admitir como comum e natural é a imputação da culpa do atropelamento ao pedestre, nem a aceitação do “acidente” de trânsito como algo casual e imprevisto.
Para refletir:
Pesquisa realizada pela Liberty Seguros com mais de mil pessoas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, Curitiba e Belo Horizonte, observou que:
– O TRANSPORTE PÚBLICO é o modelo ideal para 2/3 dos entrevistados.
– Os principais motivos são: causa menos trânsito, é mais rápido e menos poluente..
– 75% das pessoas, acima de 31 anos, acreditam no transporte público como ideal para sua cidade.
– O uso de bicicletas cresceu entre as classes B e C1.
– 63% dos ciclistas já acreditam usar o meio de transporte ideal para as futuras gerações.
A conclusão é óbvia: um novo modelo de cidade já existe na percepção dos brasileiros. Cabe agora ao gestor público transformar isso em realidade. A primeira, urgente e necessária definição é trocar a prioridade do automóvel pela primazia do direito do cidadão de se encontrar em sua cidade.
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Alexandre Pelegi – Editor da Revista dos Transportes Públicos, responsável pelo site da ANTP e colabora com o Diário do Transporte. Artigo publicado originalmente no Diário do Transporte.