O ‘Carbono 14‘ foi uma pequena meca de cultura pop da cidade nos anos 80

Principalmente a partir da década de 60, o gueto do teatro se instalou no Bixiga, não exatamente nos arredores da rua Treze de Maio. Porém, bem perto, no chamado baixo Bixiga, ao redor do Teatro Oficina, na rua Jaceguai, 520. Mesmos casos do Teatro Maria Della Costa, na rua Paim e do Theatro Sergio Cardoso, fundado em 1956, na rua Rui Barbosa, que é paralela da Treze. Além desses, o Teatro Ruth Escobar, na rua dos Ingleses, bem perto da Treze de Maio e o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia – na rua Major Diogo, também nas adjacências.

Gente do teatro, jornalistas, intelectuais, artistas, estudantes, todos frequentavam o Bixiga à noite. Essa base artística e boêmia de contracultura foi importantíssima para a juventude paulistana, principalmente no tocante à convivência, à resistência e ao enfrentamento da ditadura militar. Mas o tempo passou e as casas noturnas da rua Treze de Maio e dos arredores foram se readaptando a um novo momento. No começo dos anos 80, a rua, suas paralelas e transversais já estavam repletas de cantinas e pizzarias, um cineclube e contava com pelo menos umas oito casas com música ao vivo, além do tradicional Café do Bixiga, primeiro café noturno de São Paulo.

Entre todas elas, pelo menos estas quatro marcaram época: Café Piu-Piu, Persona, Madame Satã e Carbono 14. Só o primeiro sobrevive até hoje, aliás, a única casa que abriga música de qualidade dos circuitos underground e alternativo, além de boas bandas de cover.

No ano de 1982, o rock estava no prato do dia do brasileiro, as bandas nacionais pintavam em toda parte, nas novelas, no Chacrinha, no rádio. Entretanto, o que estava acontecendo lá fora nos interessava também, mas a informação não chegava. Nós íamos atrás dela, nas revistas gringas que só eram vendidas nas bancas grandes do Centro. Claro, e na caça aos discos importados na Galeria do Rock, no Museu do Disco, nas lojas Wop Bop e Woodstock. E isso era tudo.

Eu gostava de um pouco de tudo: new wave, punk, ska, progressivo, rockabilly, classic rock, gótico, metal. Mas tinha minhas preferências. Quando ficamos sabendo que iria abrir uma casa nova no Bixiga chamada Carbono 14, veio a informação de que seria um espaço de quatro andares, com três salas de filmes e que haveria um palco no penúltimo andar para bandas ao vivo. Era isso o que faltava. Definitivamente, ninguém tinha como assistir nada do que a gente gostava. Pouca gente tinha videocassete e as fitas eram todas importadas, tudo muito caro. O único cineminha de rock de São Paulo era o Rock Show, nas galerias do Cal Center, em Pinheiros, perto do Shopping Iguatemi, e mais nada. Os cineclubes já existiam para filmes alternativos, mas no Carbono era possível assistir tanto os megaclássicos que eles já apresentavam quanto documentários raros, animações adultas, pirações independentes, surfe, reggae e tudo quanto era esquisitice.

O boletim mensal que mais parecia um fanzine artesanal e matéria da Folha.

A coisa mais legal do Carbono 14, quando descobrimos do que se tratava, era que ali se misturavam todas as vertentes imagináveis do momento, do passado e do futuro. Exatamente isso. Tinha de tudo. Cada um se inseria na sua vibe, e eu, naquele momento, estava com a turma da nova onda do heavy metal britânico. Sabiamente, os donos descobriram que a molecada do metal era hipercarente de filmes, como todos os outros, mas não era legal misturar com outras turmas, principalmente os punks, que eram problema.

Então, inventaram uma matinê aos sábados a partir das 14h. Lembro-me como se fosse hoje. Todo mundo queria ver esses filmes, logo, chegamos meia hora antes de abrir e já havia uma fila enorme de cabeludos. O filme em cartaz era Black And Blue, metade Black Sabbath e metade Blue Öyster Cult. Praticamente 99% daquela molecada nunca tinha visto nada do Sabbath ao vivo na vida, só ouvido pelos discos.

Era estranho esperar para entrar numa casa underground de rock que tinha uma sala de cinema com 130 lugares para filmes 35 mm, chamada Piloto 13, outra com mais 100 para vídeos, de nome Kinorama, uma loja misturada com livraria que vendia tudo quanto era coisa new wave, de roupas a objetos inúteis. No primeiro andar, um fliperama. Sim, isso mesmo! Só com máquinas de pinball, que já estavam ficando cult. Eu era um adepto forte. Uma serralheria que funcionava de dia de semana, mas ficava sempre fechada quando a casa estava funcionando, e outra sala especial para fitas 16 mm e Super 8, tipo documentários e  extravagâncias, essas coisas. Essa era menor, cabiam umas 70 pessoas. Nela, estavam em cartaz filmes cabeça, como Morangos Silvestres de Ingmar Bergman, e nas outras, filmes de surfe, cinema alemão ou francês, cada uma com seu público fiel prestigiando.

Imagem: Marcelo Yellow / Acervo Pessoal.

Subimos ao andar de cima e aí, sim. Um espaço de vídeo com telão, para filmes em videocassete, bem maior e repleta de roqueiros barulhentos, mais um bar e uns bancos para servir de lounge. Todos ocupados, bar cheio, só a nossa turma. Aquilo era uma maravilha. Muitos dos meus melhores amigos eu os conheci nesse lounge, conversando e sendo apresentado por outros. Depois de ver o filme, o grand finale. Para fechar a matinê, um show ao vivo de uma das bandas do circuito underground, coerentemente de acordo com o estilo dos filmes. Ainda havia um terraço no quarto andar, com outro bar conceitual chamado Rede de Intrigas e uma vista privilegiada do bairro.

Esse roteiro se repetiu dezenas de vezes, mas não enjoava nunca. A maioria dessa galera curtia Black Sabbath, Deep Purple, Kiss e Led Zeppelin, além das derivações delas, como Rainbow, Whitesnake ou Ozzy Osbourne, e também as chamadas bandas do New Wave Of British Heavy Metal, puxadas pelo Iron Maiden, Judas Priest, Metallica, Motörhead e Venom, somadas à americana Twisted Sister. As bandas ao vivo mais frequentes eram Vírus, Salário Mínimo, Abutre, Centúrias e Harppia. Mas isso foi a minha trip de 1982 até 1984, quando ainda era menor de idade. Daí para a frente, ficou diferente porque pude começar a curtir sozinho nas madrugadas. Definitivamente, a coisa era outra, já não era mais o barato do rock adolescente pirulito. No lugar da plateia onde rolavam os shows, virava uma pista e a balada atravessava a madrugada com tudo o que eu ainda não tinha visto na vida.

Bia Abramo e Arthur Veríssimo resgataram muito bem esse clima, em 2010

Em duas ótimas reportagens publicadas pela revista Trip no mesmo dia, em 11 de maio de 2010, Bia Abramo conseguiu reunir Andrez Filho, um dos fundadores, Theo Castilho, outro, e Alex Atala, frequentador na época, no artigo Os Carbonários e Arthur Veríssimo fez uma brilhante viagem ao passado, contando passagens de quando era DJ residente da casa, em outro, intitulado Carbono 14: Botas Voadoras.

A glamorosa Christiana Wastrup. Foto: Marcelo Yellow.

No primeiro, ao redor de uma mesa, eles relembraram como era a estrutura física da casa, que Andrez relatou e corrigiu os outros, precisamente. Theo contou uma passagem sobre um labirinto que eles estavam construindo e que, na hora de pintar, por causa do cheiro da tinta, saíram todos desesperados rasgando tudo. Bia ressaltou a sacada genial da casa ter se instalado estrategicamente no Bixiga, que já contava com a turma boêmia do teatro, que também já existia um cenário protogay desenhado e o endereço era bem central e acessível para todos. Atala emendou com o lance da sexualidade, porque estava aparecendo a AIDS bem naquele momento, que as informações às que hoje a molecada tem acesso, naquela época, não eram disponibilizadas. Chegava-se a falar que não se podia chegar muito perto de um homossexual porque o vírus era transmitido pelo bafo ou por microgotas de saliva.

Bia Abramo resumiu bem o espectro do Carbono 14 como um lugar que concentrava praticamente quase “tudo o que acontecia de novo e interessante em São Paulo”, que inspirou bandas, movimentos e parcerias, num ambiente – não diria como ela, familiar mas – seguro, livre, tranquilo. Nunca vi seguranças, acho que nunca precisou, exceto uma ou outra treta nervosa que se resolvia ali mesmo, que eu me lembre. E que por isso tudo, finalizou ela, apaixonadamente, a casa ficou “gravada a ferro na memória afetiva de uma geração.” Pactuo do mesmo feeling de que ali, nas escadas escuras ou nos banheiros do Carbono, muita gente da nossa faixa de idade “teve a sua primeira vez. Metaforicamente falando ou não.”

Quanta gente conhecida se descobriu ou desenvolveu uma identidade própria naquele antro sadio de novidades. Os filmes eram o motivo principal que nos atraía, mas você podia ver uma banda ao vivo, comprar livros, discos e roupas para se sentir atual, ver um show de dança ou um desfile de moda nada comuns, uma performance radical, até umas palestras estranhíssimas, ou dançar na pista à noite, paquerar, conhecer muita gente pra lá de diferente, vinda de um leque gigantemente diversificado. Lembro-me bem da presença dos caras do Ira! e de alguns dos Titãs, do Nasi e do Ciro Pessoa, principalmente. Edgard Scandurra, Charles Gavin, Guilherme Isnard, que depois apareceu como vocal do Zero e dos manos Clemente, dos Inocentes, e Kid Vinil, que sempre encontrávamos nas lojas de discos do centro. Alex Atala era um punk por vocação, porque era superbem informado e educado, mas produzia seu visual à sua moda, que não era barata, ou seja, ele era mais boy do que a maioria. Muito jornalista importante na época e depois, como os pupilos da nova geração do caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, Fernando Naporano e Pepe Escobar, e os próprios Bia Abramo e Arthur Veríssimo.

Pepe Escobar, Arthur Veríssimo, Alex Atala, Christina Wastrup, Nasi, Guilherme Isnard, Bia Abramo.

Arthur havia recém-abandonado os incensos, a túnica, a respiração e a massagem ayurvédica como discípulo de Osho e caiu de boca nesse covil pulsante e mundano. Ele conta que, certa vez, ele e seu parça DJ Alois Lacerda – o Eddie The Monster – viram pela janela acima da pista, repleta de tudo quanto era tipo de gente, de novos punks e darks, carecas do ABC, aspirantes a modernos, hippongos diversos até a skatistas, surfistas e algo mais, dois caras começarem a rolar numa briga, que alguém, como num truque de mágica, conseguiu separar. Ainda bem porque um deles era um surfistinha e o outro era um daqueles punks sanguinários que ninguém queria papo, que tranquilamente poderia estar com alguma faca e tal. Ia dar merda. Num átimo seguinte, duas gatas gostosas e chiques entraram na cabine dos DJs, como se fossem VIPs, uma com uma garrafa de champanhe francês e outra com uma caixinha de música com canudo de metal, espelhinho e tudo, cheia de pó.

Antes que eles pudessem falar um “a”, um pé de bota foi arremessado da pista para dentro da cabine, bem no rostinho da cafungadora, que estava com o canudo na narina. Um segundo de puro caos, até que Arthur viu que sua namorada na época iria atirar o outro pé. Não deu outra, o pisante bateu na sua cara, pipocou sobre o toca-discos e a música parou. Um ruído áspero e agressivo ecoou da pista, mas antes da situação sair do controle, Lacerda voou como um cisne da Suíte Quebra-Nozes, deitou um vinilzão do Joy Division e a agulha na música Love Will Tear Us Apart. Pronto!  A pista urrou, desencanou e começou a bombar alucinadamente de novo.

O Carbono era tudo isso e mais um pouco. Por isso, era normal ver um skatista alienado interagindo com uma exposição de fotos conceituais. Ou um caretaço assistindo a uma performance de um travecão saindo de uma banheira de groselha. Também ficou comum, ninguém estranhava mais nada. Era um ambiente livre, de criação e de muitas novidades. Foi nessa pequena meca de cultura pop que tinha o poder de abrir, como num buraco negro, um vácuo que se comunicava no ato com outros mundos, que perdi minha virgindade mental. Ou melhor transgredindo, como na época, onde perdi o cabaço moral, pois, com meu caráter, educação e bagagem cultural, sem me corromper, foi como ter me despido de medos e preconceitos infundados que não faziam parte de mim, mas depositados em mim por outras pessoas, como família, professores ou pela ética religiosa, que só atrapalhavam e pesavam, de bobeira. Isso tudo caiu no chão daquela pista e neguinho ficou pisando em cima, naquela noite toda de 1984. Eu acabara de fazer 18 anos e tinha, lato sensu, virado dono do meu próprio nariz.

Esse portal intergaláctico foi aberto em 1982 e se fechou em 1987. Foram cinco anos que valeram por cinquenta. Devemos tudo isso à família Castilho. O casal Castilhão e Maria Helena já está no céu e não temos mais como agradecer pessoalmente. A Andrez Castilho Filho e a Renata, a irmã que cuidava do material gráfico e do boletim mensal com cara de fanzine, nosso agradecimento cheio de saudade. E ao caçula Theo, que sempre insistiu que “arte é datação”, nosso muito obrigado e a confirmação pública de que ele estava certo. O decaimento radioativo e a emissão de raios cósmicos culturais do Carbono 14 não cessarão tão breve enquanto nós, fósseis vivos, estivermos por aqui.

***
Por Paulo Tasca no Vírgula.

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