O ‘derivoscópio‘: um situacionista contemporâneo provoca reações nas ruas de São Paulo

Sessenta anos depois dos situacionistas, o jornalista, diretor do portal Change e artista multimídia Lucas Pretti, em parceria com o ativista Tiago F. Pimentel, inventaram uma geringonça para fazer uma experiência artística nas ruas de São Paulo – o derivoscópio.

O derivoscópio faz menção ao termo “Deriva”, consagrado pelo francês Guy Debord, no seu famoso texto de 1958 “Teoria da Deriva”. Ele participava de um movimento chamado Internacional Situacionista, que,  pregava que o perder-se na cidade era uma possibilidade de arte. O manifesto detalhava os conceitos da psicogeografia para pregar um método detalhado de arte coletiva. Para eles, era preciso experimentar a aventura da realidade cotidiana.

Debord deixou muitos seguidores e alguns críticos (como o inglês Geoff Nicholson, que critica o dogmatismo do texto situacionista), mas a caminhada parece ter sido incorporada no rol das intervenções artísticas contemporâneas.

Lucas é um deles. Seu derivoscópio é uma brincadeira que tenta mexer com as pessoas, registrar a sensação de andar e aguçar a própria percepção de quem está usando, sobre a cidade.

Eu conversei com o Lucas a respeito de caminhadas, arte e o derivoscópio. Aqui está o resumo da entrevista.

Fotos: Arquivo Lucas Pretti.O que é o “derivoscópio” afinal?

É um capacete que “sente” a cidade. São vários sensores ambientais (vento, poluição, GPS, suor) ligados a um computador RaspberryPi e duas câmeras que registram as situações vividas ao deambular pela cidade em deriva. Chegamos nessa explicação resumida (“capacete que sente a cidade”) depois de muita gente nos abordar e forçar a usar só dois segundos para explicar, de bate-pronto, na velocidade que a rua imprime. Antes, começávamos dando um textão de proposição estética, intenções, detalhes dos sensores etc., mas percebemos que está na síntese o poder de transformar o capacete num objetivo mágico.

Como foi a experiência de sair por aí com ele? O que as pessoas acharam?

Foi (e é) muito peculiar. As pessoas se interessam muito, é algo que tem a capacidade de romper o transe do cotidiano, fissurar o fluxo do automatismo casa-trabalho. As primeiras reações já acessam um imaginário do espetáculo e da vigilância (“Lá vem o Google!”, “Filma eu”), e o aspecto meio Professor Pardal também aciona reações mais afetivas e da perspectiva do sonho (“Olha o astronauta”, “Homem do futuro”). Só depois de usá-lo pela cidade é que entendemos seu potencial de fazer uma observação-participativa, ou uma “participação-observativa” (termo do Tiago). O Derivoscópio acaba abrindo um portal para registrar as emoções de uma outra cidade que só existe naquele momento, para as pessoas, e também para quem usa.

O que você aprendeu sobre a cidade?

O aprendizado mais objetivo é o quanto eu não conhecia lugares pelos quais passo praticamente todo dia. Por que nunca virei nesta rua? Por que nunca tinha reparado neste prédio? Será que sempre tem crianças aqui nesta parte?

Deambular por áreas que eu nunca tinha explorado também gera um sentimento de estranheza típica de quem está em outro país, esse olhar deslumbrado de viajante. Lembro do Antunes Filho falando disso numa aula, da importância de o ator conservar o olhar de fora para seus trajetos diários. Estranhar o entorno.

O traçado urbano é também opressor no sentido de automatizar as pessoas que se locomovem – é disso que fala o Debord no seu conceito de “urbanismo unitário”. Os caminhos que a cidade te oferece não são iguais ao número de possibilidades existentes, são muito menores! Seja pelo ato consciente do urbanista de não facilitar o acesso a determinados locais, ou de controlar uma determinada população para que não circule por regiões que devem ser “protegidas”, ou seja por outras subjetividades que também são fruto do capital, por exemplo relacionar “iluminação” e “segurança”. Ao usar o capacete também vimos essas forças agindo sobre nós e acho que aprendi um pouco mais a interagir com os outros, e com a cidade, com um olhar mais aberto e humano.

O Derivoscópio é um “capacete sensitivo”. É arte – no sentido de detonar a imaginação, criar outros mundos. Fotos: Arquivo Lucas Pretti.Quais são os lugares que causaram maior mudança de humor nos resultados? Ou melhor, quais foram os lugares que geraram sensações happy ou sad?

O número de sorrisos é proporcional ao número de pessoas com que se cruza. É maravilhoso reagir aos passantes com que normalmente não se interagiria! São as pessoas que provocam sorrisos, e o Derivoscópio em geral registra essas como situações “felizes”. Nos vídeos, a tela se enche de cor, a cidade ganha vida, é tocante notar esse detalhe. Já as zonas mais cinzas e desabitadas, ao contrário, normalmente são acompanhadas de expressões mais sisudas, desconfiadas, ou perplexas.

Cada deriva é uma, e cada pessoa que veste o capacete terá novas reapropriações.

Para você, como o caminhar pela cidade pode ser visto como uma arte?

Desde os situacionistas, nos 1950/60, há uma corrente de pensamento nas artes que vê essas experiências urbanas como arte de resistência e contranarrativa ao sistema cada vez mais espetacularizado (da sociedade em geral, e da arte também).

Caminhar pela cidade não deixa rastros, sobra só o registro, quando muito, é uma experiência sempre única, irreproduzível. Daí dizer que artistas como Francis Allys, ou Richard Long, ou Fábio Tremonte, ou David da Paz (para citar contextos e tamanhos bem diferentes), assumem uma postura anti-mercado ao criar obras que desvanecem na rua. Esse tipo de proposição, a meu ver, só tende a ficar mais urgente com os anos, já que vivemos o aprofundamento sem limite da sociedade da informação. Egos autorreferentes transbordantes em rede. Tudo é autopromoção. 15 segundos de fama. 15 mil likes de fama. O que é o leitor de íris dos novos iPhones se não o “vigiar e punir” do Foucault transfigurado em cool? No Derivoscópio, nós nos apropriamos quase antropofagicamente desses conceitos – duas câmeras, o selfie, a emoção, a vigilância – para problematizar e ironizar tudo isso. Caminhar pela cidade é inútil. Não gera nada. Aí está a arte.

Fotos: Arquivo Lucas Pretti.Dá para curtir a cidade enquanto se locomove cotidianamente?

Claro que dá. Mas não quero cair no discurso naïf perigoso de conectar esse “curtir” a uma condição individual, algo na linha “só não faz quem não quer, basta abrir os olhos, olhar para o lado e ver como a cidade é linda”. Esse discurso normalmente vem de uma posição muito privilegiada, de quem tem espaço mental para praticar isso.

A imensa maioria das pessoas, afogadas pelo trabalho e pela pressa e por não poder morar perto e pela pressão da sobrevivência, usa a cidade como via de passagem. Elas não tem culpa. Fissurar esse automatismo é um dos nossos objetivos. Tentar dar um estalo para outras percepções mesmo quando parece não ter mais saída.

Veja mais nos links:

https://youtu.be/pmd4g2C3-nY

http://terrenos-apaixonantemente-objetivos.cc/

***
Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. Artigo publicado originalmente no seu blog Caminhadas Urbanas.

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