O esplendor proletário e o Grupo Santa Helena

São Paulo, 1922. A Semana de Arte Moderna muda o mundo das artes, embora o descendente de espanhóis Francisco Rebolo Gonsales não lhe dê muita atenção. Aos 20 anos, prefere correr atrás da bola na esquadra reserva do Corinthians. Não leva a taça, mas na foto oficial da comemoração do Campeonato Paulista, vestido de gravata e terno, posa entre os titulares. O jovem talvez tivesse seguido como jogador de seu time do coração, para quem até mesmo desenharia o símbolo, se houvesse sentido futuro na carreira futebolística. Em lugar disso, preferiu pintar paredes.

Muito trabalho haveria para ele, que iniciara a formação artística na Escola Profissional Masculina, do Brás. Em 1926, mestre na confecção de frisos e florões, investiu em uma empresa de decoração na Rua São Bento. Os negócios prosperaram e ele quis pintar de verdade. Mas onde montaria seu ateliê? Rebolo mirou no Palacete Santa Helena, inaugurado em 1925 na Praça da Sé. O prédio, que seria derrubado em 1971 para a construção do Metrô, continha então um belo tea­tro e oferecia acomodações confortáveis para escritórios.

Mas decaía em prestígio nos anos 1930, porque aqueles em boa condição financeira começavam a rumar para a Praça da República ou a Avenida Paulista. Em 1933, o pintor detectou a baixa no preço dos aluguéis e tomou para si a sala 231. Ali fixaria seu ateliê e o escritório de decoração. Dois anos depois, o amigo Mário Zanini, decorador e empreiteiro, ocuparia a sala contígua, a de número 233, para idênticos fins. Logo o ateliê se tornaria uma sala só e os potenciais artistas da cidade acorreriam a ela em busca de oportunidades.

Lenhadores, de Rebolo, óleo sobre tela (1950). Imagem: Divulgação.

Sem se autointitular um movimento artístico nem proferir manifestos, o Santa Helena, estabelecido como grupo em 1936, incluiria sete outros pintores, apelidados pelo escritor Mário de Andrade de “proletários”. Durante a semana, no grande ateliê, os artistas, todos do sexo masculino, geriam seus escritórios e representavam naturezas-mortas.

Nos fins de semana, saíam à rua para retratar a cidade e seus arredores. Seus trabalhos começaram a chamar a atenção geral, embora gerassem observações em leve tom irônico. O crítico Geraldo Ferraz, por exemplo, descreveu-os como tradicionalistas, “a morrer de amores pelos processos de Giotto e Cimabue”.

Em 1937, eles seriam convidados a integrar a 1ª Exposição do Grupo de Artistas Plásticos Família Artística Paulista, ao lado dos consagrados Anita Malfatti e Waldemar da Costa. Como Rebolo e Zanini, os italianos Fulvio Pennacchi e Alfredo Volpi, o português Manoel Martins e os filhos de migrantes italianos Clóvis Graciano, Humberto Rosa e Alfredo Rizzotti viviam de colorir paredes, pintar carroças ou vender carnes, sem se dedicar à briga de conceitos que levaria a arte até o concretismo.

Espelhados no movimento Novecento, que na Itália advogava o retorno à técnica da boa pintura, eles negavam os preceitos futuristas, fauvistas ou cubistas, de todo modo anacrônicos na Europa, e exerciam quase sem exceção sua arte figurativa, a ecoar as experiências de um Cézanne, às vezes de um Matisse. 

Palaceta Santa Helena: modernos para os acadêmicos, acadêmicos para os modernos. FotoDivulgação.

“Eles corporificaram o ideal de que a virtude está no meio, nem em um extremo nem em outro da arte. Foram modernos para os acadêmicos e acadêmicos para os modernos”, diz o crítico Enock Sacramento, curador da exposição Grupo Santa Helena – 80 Anos, até 10 de junho na Proarte Galeria, em São Paulo. O fato de a homenagem dar-se em um espaço comercial de características museológicas e não em um museu talvez demonstre a extensão do apreço que a crítica oficial tem devotado ao grupo no decorrer da história. Grande parte das obras agora expostas pertence a colecionadores e herdeiros. E apenas alguns quadros de propriedade da galeria estarão à venda, como os de Volpi, o único entre os artistas do grupo a ter acenado aos concretistas, de quem oportunamente se desligou. 

A exposição divide os pintores por núcleos autorais. Sete obras foram escolhidas para representar cada um dos nove autores, exceto no caso de Humberto Rosa, de quem houve apenas três quadros disponíveis para a exposição, os óleos sobre tela Margem do Tietê,Paisagem com Igreja e Batuque. É rara a oportunidade de conhecê-lo, como a Manoel Martins, cuja arte combativa ecoou as representações surrealistas das pintoras mexicanas, e à obra de Alfredo Rizzotti, que documentou a paisagem e o casario com grossa pincelada impressionista, contrária àquela dos acadêmicos brasileiros, adeptos do uso do pincel fino.

Em cada núcleo desta mostra de apuro histórico observa-se a evolução de estilo de cada autor, cujas obras se enfileiram segundo sua realização no tempo. Assim é que se sabe como Aldo Bonadei, que estudou arte na Itália de seus pais, caminhou da representação figurativa até a expressão abstrata, a partir dos famosos casarios da Rua Abolição. De Clóvis Graciano apreende-se a monumentalidade dos painéis históricos, um deles confeccionado para a sede legislativa municipal. “Você está indo bem, mas é preciso estudar um pouco”, disse Candido Portinari ao deparar com sua produção inicial. O jovem se veria influenciado pelo mestre na representação humana, a menos comum entre os santo-helenistas.

Arcos sobre mulheres, acrílica sobre chapa de Fulvio Pennacchi (1977). Imagem Divulgação.

Graciano começou como pintor de carroças. Depois lutou na Revolução de 1930 e foi parar no presídio de Ilha Grande, onde dividiu a cela com intelectuais. Gostava de estudar e, para viver, tornou-se fiscal. Seguiu representando seu universo telúrico em que havia som e ritmo. Tornou-se diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo e ocupou o cargo de adido cultural brasileiro em Paris. Era versado no mundo, assim como Fulvio Pennacchi, que, formado em sua Itália natal, chegou ao Brasil em 1929, certo de que faria a América. O País, contudo, mergulhava em crise, e ele partiu para o ramo das carnes. Seu açougue prosperou na Rua Bela Cintra. “Era muito criativo, um artesão no bom sentido da palavra”, diz o curador Sacramento. Incumbido de dar aulas de pintura às mulheres da família Matarazzo, o artista casou-se com uma delas, Filomena. Eis por que, com algum pesar, abandonou a profissão de açougueiro, pouco indicada para um homem em sua nova condição social.

Cabaré, óleo sobre tela de Manoel Martins (1946). Imagem: Divulgação.

Pennacchi construiu a própria casa de um quarteirão. Desenhou os móveis, compôs afrescos. Pintou a paisagem toscana e a brasileira, fez naturezas-mortas. E representou de modo tão próprio as festas populares, como as de São João, que fez Alfredo Volpi declarar, sobre sua marca na pintura: “Subtraio, do retângulo, o triângulo. Pinto o retângulo. Na verdade, não sou um pintor de bandeirinhas. Quem pinta bandeirinhas é o Pennacchi”. 

***

Por Rosane Pavam. *Reportagem publicada originalmente na edição 902 de CartaCapital, com o título “O esplendor proletário“.

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