O que afasta a população de rua dos albergues?

Em meio à onda de frio que atingiu a capital paulista nos últimos dias, a Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo denunciou a morte de sete pessoas e acusou a prefeitura de retirar colchões, pedaços de papelão e outros materiais usados contra o frio.

A gestão Fernando Haddad (PT) atribui as mortes a doenças preexistentes, mas prometeu na quinta-feira 16 mudar o protocolo de abordagem da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e dos agentes das subprefeituras.

Em meio a essa discussão, surgiram questionamentos a respeito dos motivos que levam moradores de rua a passar a noite ao relento mesmo nos dias mais frios. Ao menos parte da resposta está na falta de vagas do sistema de acolhimento e nas regras rígidas demais de alguns albergues.

Rafael Lessa, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, afirma que o problema inicial é a falta de vagas. O último censo da população de rua, realizado em 2015 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), mostrou que São Paulo tem quase 16 mil moradores de rua, mas a prefeitura dispõe de apenas 10 mil vagas em abrigos.

“Em primeiro lugar, as pessoas não procuram os albergues porque faltam vagas. É uma questão matemática simples: para 6 mil pessoas é destinada a rua, simplesmente porque não há vagas”, diz Lessa. “As vagas abertas em ações emergenciais não dão conta dessa demanda, então a maioria vai ficar na rua mesmo. Se todos quiserem ir para os albergues, não tem vaga”, afirma.

Ainda assim, é comum que o sistema de acolhimento da prefeitura tenha vagas ociosas, mesmo em noites frias. Na madrugada de quinta-feira 16, por exemplo, sobraram 122 vagas na rede, de acordo com a prefeitura.

A explicação para isso é a falta de leitos no centro, onde a maioria vive e trabalha, e também a rigidez do sistema. O padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, afirma que os albergues não podem ser a única resposta das autoridades. Ele defende a ampliação de políticas públicas que deem mais autonomia à população em situação de rua, como locação social e auxílio-aluguel. “A grande questão é não reproduzir sistemas institucionais. Todo sistema institucional tira a autonomia das pessoas”, diz.

Segundo Lancellotti, a lógica dos abrigos reproduz, por exemplo, a lógica das penitenciárias, com vigilância excessiva. “É uma circunstância que precisa ser levada em conta. Essas estruturas acabam reproduzindo o sistema penitenciário, principalmente no caso de estruturas muito grandes, como o [centro de acolhida] Zaki Narchi, que recebe 400, 500 pessoas. Isso não traz autonomia, não personaliza o atendimento e não leva em conta as necessidades das pessoas”, diz Lancellotti.

Para o defensor público Rafael Lessa, o rigor das normas e as semelhanças com as penitenciárias de fato afastam a população de rua dos albergues. “Existe a questão dos horários de entrada e saída, que são rígidos, e muitas vezes a pessoa não consegue se adequar aos horários do albergue porque trabalha”, diz.

A travesti Nayá mora há dois anos na Praça 14 Bis. ‘Nem sempre tem lugar adequado pra mim (em albergue)’. Foto: Débora Melo

É o caso do catador José Maria Lemos de Oliveira, de 59 anos. “Pra conseguir vaga no albergue, tenho que chegar até as cinco da tarde. Passou desse horário, não entro”, disse. Deitado debaixo de um viaduto atrás do Masp (Museu de Arte de São Paulo), na região da avenida Paulista, Oliveira se preparava para passar a noite de quinta-feira 16 naquele local. “Pra mim não tem jeito. É melhor ficar na rua”, diz.

Lessa lembra que esse tipo de problema se agrava pela falta de oferta de emprego aos ex-detentos. No caso das 15.905 pessoas que vivem nas ruas de São Paulo, 40% já estiveram em uma penitenciária. “Aqueles que saíram do sistema prisional quase não têm oportunidade de emprego, porque faltam políticas públicas para a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho”, diz.

Além da rigidez das regras, moradores de rua afirmam que são mal tratados por funcionários dos abrigos. Eles também se queixam da pouca quantidade de vagas para famílias, da falta de lugares onde possam deixar carroças e animais de estimação e, ainda, higiene precária.

“Albergue é muito sofrimento. Ninguém dá atenção pra gente”, afirma João (nome fictício), 18 anos, que há quase dois meses vive em uma barraca na Praça 14 Bis, no centro, com a mulher, a filha e dois cachorros. A madrinha da criança, que mora na barraca ao lado, diz que a população LGBT sofre ainda mais. “Pra mim, que sou travesti, é pior. Nem sempre tem espaço adequado”, afirma Nayá, de 24 anos.

O jornalista Fabiano Viana, que atua na comunicação da ONG Rede Rua, defende que os moradores em situação de rua participem ativamente da criação das normas dos espaços de convivência, por meio da realização de assembleias, por exemplo. Segundo Viana, também é urgente a prestação de um serviço mais humanizado.

“Nas ruas, esses cidadãos já são privados da atenção, do olhar. São tratados como criminosos. Se vão para os serviços [de acolhida] e precisam enfrentar essas questões, fica mais difícil permanecer nos abrigos. É preciso uma relação mais humana para que eles se sintam pertencentes àquele espaço.”

Diante da pressão popular dos últimos dias, a partir das denúncias da Arquidiocese, a Prefeitura São Paulo anunciou na quinta-feira 16 a instalação de quatro tendas que poderão acolher um total de mil pessoas na região central, em caráter emergencial. “A ideia das tendas é criar um espaço mais livre, mais aberto, onde as pessoas se sintam mais à vontade”, disse Luciana Temer, secretária da Assistência Social do município.

As tendas serão montadas na Sé, no Anhangabaú, no Glicério e na Mooca, e cada uma terá um canil para animais de estimação, supervisionado pelo Centro de Controle de Zoonoses. De acordo com Haddad, as tendas deverão estar prontas em até uma semana, antes da chegada de uma nova frente fria.

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Débora Melo em Carta Capital.

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