O trânsito nas grandes cidades latino-americanas é uma problemática por si só: o paulistano médio, por exemplo, gasta cerca de 2h30 por dia no transporte, segundo pesquisa da ONG Nossa São Paulo. As consequências mais óbvias são estresse, além de tendências maiores à depressão, burnout e insônia, como aponta a VitalityHealth.
Os fatores mais profundos são ainda mais impactantes: segundo Mateus Humberto, professor da Escola Politécnica, analisar o trânsito é analisar a cidade como um todo. Ele tem um comentário bem enfático que, para ele, resume em poucas palavras o grande problema: “A solução não se sabe ao certo – muitos acham que a bicicleta ou o Metrô são o remédio, mas não sabemos essa relação. No entanto, sabemos que, com certeza, o câncer é o carro e a motocicleta”.
Problema coletivo, solução particular
Ele explica que a razão disso é que cidades brasileiras foram crescendo a partir de uma visão neoliberal de desenvolvimento – ou seja, cada um resolvia seu problema por conta própria, não de forma conjunta. Assim, foram “décadas e décadas de uma ótica baseada no automóvel, que ele ia solucionar o problema de acesso para todo mundo”, conta o pesquisador.
Esse pensamento foi moldando a cidade, de forma que vários subúrbios são consequência de um pensamento de que, apesar de longe, o carro resolve. “Isso fez com que qualquer estrada de terra fosse um caminho possível para se chegar a uma nova habitação, fazendo com que as pessoas se baseassem no automóvel para se deslocar a cada vez maiores distâncias.” Hoje, metade dos domicílios brasileiros tem carro, enquanto um quarto tem moto.
Esse pensamento, de acordo com Mateus Humberto, “não é coisa trivial”. A consequência urbana desse planejamento foi que as pessoas, em especial as de classe média para baixo, começaram a buscar terrenos cada vez mais afastados do centro para conseguir moradia mais acessível, na expectativa que o carro resolvesse seus problemas de deslocamento. Esse fenômeno descrito é chamado de “espraiamento urbano”, em que a cidade cresce desorganizadamente para fora do centro.
Consequências para a cidade
A esperança de que o carro resolveria o problema não foi cumprida. Antes de tudo, mesmo as pessoas com veículo particular agora têm que enfrentar congestionamentos cada vez maiores, pois todos buscam resolver o próprio (mas também coletivo) problema. Por outro lado, quem não tem carro ou moto fica em uma situação ainda pior: longe do centro e do acesso a transportes públicos bem planejados, grande parte da população precisa se deslocar por uma cidade que não foi feita para quem não está no volante.
O resultado é uma vida no trânsito. “A longo prazo, isso faz com que o tempo de deslocamento das pessoas aumente. E mesmo que as populações desses bairros periféricos de menor renda passem a usar as linhas de transporte público, elas já estão em uma distância que é muito distante dos padrões aceitáveis para uma pessoa morar do trabalho.”
O professor cita, ainda, um fenômeno desse movimento que ele descreve como “perverso”: “As regiões onde se tem o Metrô são concentradas em regiões de mais alta renda, onde as pessoas não tendem a usar transporte público. É até um pouco cruel: uma infraestrutura supercara, mas justamente onde moram as populações que não usam o transporte público”. Segundo a pesquisa da Nossa São Paulo, o tempo médio de espera no ponto de ônibus é de 24 minutos, confirmando os obstáculos de acesso ao transporte público.
Ainda segundo a mesma pesquisa, pelo menos recentemente o uso de transporte público frequente tem aumentado: passou de 45% para 61% nos últimos três anos, enquanto os que utilizam transporte privado caiu de 54% para 38% nesse mesmo período. Mas se isso se deve a uma melhora do transporte ou a uma piora da condição financeira das pessoas, por exemplo, não dá para concluir.
O pesquisador comenta que, apesar de mudanças graduais na gestão do transporte público, o pensamento que lidera a visão de cidade ainda é de uma solução individual para um problema coletivo. “Vemos até obras de transporte público sendo questionadas por estarem interferindo na fluidez viária do tráfego motorizado individual.” Ele cita que projetos de linhas de ônibus, ciclofaixas e alargamento de calçada são criticadas por disputarem espaço com carros e motos, os quais são ainda tidos como prioritários.
Propostas de solução
Para solucionar a questão, ele levanta uma série de medidas de políticas públicas que poderiam ser implementadas. As óbvias são o contínuo desenvolvimento do transporte público – ônibus, trem e Metrô –, além de espaços públicos de deslocamento, como ciclovias e calçadas. As outras, menos populares, passam por restringir o uso de veículos particulares, mudando a ideia de que “circular é preciso, viver não é preciso”, nas palavras de Eduardo Vasconcellos.
Uma ideia seria a redução de velocidade das vias, “o que aumenta a fluidez e pode fomentar outros modos de transporte”, causando menos atropelamentos ao mesmo tempo que melhora a circulação na cidade. Há também formas mais diretas de se moldar a situação, como proibir a circulação em determinados tempos e locais, restringir espaços de estacionamento ou uma taxa e contribuição pelo uso do espaço. Estas, porém, enfrentam grandes dificuldades logísticas e, principalmente, políticas, segundo o professor.
Uma medida mais suave seria a educação no trânsito. “Não só de educação dos impactos que o automóvel tem na vida das pessoas, mas de incentivos mesmo de ensinar as pessoas a pegarem o transporte público”, explica Mateus Humberto. “Tem muita gente que não tem noção de como pegar o transporte público, como as linhas são integradas, como o sistema funciona”, complementa. Ele diz que, por hora, esse tem sido o foco das gestões municipais nesse sentido.
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Artigo publicado origalmente no Jornal da USP.