Os prazeres do pedal rotineiro em São Paulo agora em Ovar, Portugal

Vivemos em Ovar, pequeno concelho a cerca de 30 minutos da belíssima Porto, seja de carro ou de comboio, como os trens são chamados por aqui. E que bom conhecer uma cidade e seus encantos com calma, prestando atenção aos detalhes. Ovar possui pouco mais de 50 mil habitantes e mais de 60 km de ciclovias “formais”, devidamente sinalizadas, seja sobre a calçada, como aquelas que cortam a avenida Faria Lima, em São Paulo, ou também bem demarcadas em vermelho na lateral das pistas. Do centro da cidade, uma daquelas bem típicas, cheia de casinhas e seus lindos azulejos, muitas capelas e uma bonita igreja matriz com a frente toda azulejada, o pedal passa por ruas estreitas nas quais corre-se o risco de dar de cara com um carro vindo na nossa direção. Mas o movimento é pouco e os carros respeitam muito as magrelas. Se surgir esse confronto, quem tá no selim tem a preferência, sempre respeitada. Na prática, um joga o carro levemente para o lado, o outro espreme um pouquinho a bike perto das casas – muitas vezes não tem calçada mesmo – e todos circulam na paz. E após alguns poucos quilômetros de circulação nesse clima bucólico, o cenário muda totalmente e desembocamos na praia. Sim, Ovar tem aquele clima gostoso de cidade do interior, bonitos parques, pracinha, trailers vendendo churros e, logo ali na frente, a praia, com um mar frio, forte, mas uma orla agitada de gente, mesmo agora que se visita a praia de gorro e cachecol. Essa mudança do campo para a praia se dá em menos de cinco quilômetros. De repente, deixa-se para trás uma viela estreita e com piso de pedras para cair numa pista vermelha que leva o ciclista direto para um calçadão de pedestres, que por sua vez termina na beira do mar. 

Foto: Pedalo pela Cidade.

Mas apesar de todos esses estímulos para o pedal, Portugal ainda é, dentro da Europa, um dos países menos “pedalados”. O Censo de 2011 mostrou um país com pouco mais de um milhão de bicicletas. O número não é baixo, considerando toda a população de Portugal. Porém, o mesmo levantamento apontou que tais bicicletas eram usadas regularmente por menos de 1% da população. Ou seja, as magrelas ficavam mesmo encostadas.

O que serve de consolo é que há cada vez mais uma mobilização para que esse cenário mude. Aqui mesmo em Ovar, a pacata Ovar, a Câmara Municipal disponibiliza bicicletas gratuitamente para quem quiser dar seus rolês pela cidade e pela praia. Já experimentamos algumas vezes e funciona perfeitamente. As bikes estão ok e só é preciso preencher um cadastro rápido e tomar posse das duas rodas. Aliás, de acordo com um portal independente que mapeia as ciclovias de todo o país, Ovar é uma das cidades com a maior malha, proporcionalmente. E há muitas iniciativas espalhadas pelo país voltadas para ampliar o uso da bicicleta, não só como meio de transporte do dia-a-dia, mas também para o cicloturismo, como fonte de geração de renda e emprego e por aí vai.

Em resumo, o país é cortado por Ciclovias, Ecovias e Ecopistas (ou Pista Verde). Esta última é a designação portuguesa atribuída aos percursos que utilizam antigos ramais ferroviários desativados em diversas regiões do território continental, formando uma verdadeira rede ou sistema nacional de passeios na natureza e, por vezes, também em meio urbano. O mapeamento de parte de todas essas artérias é, por exemplo, um dos importantes projetos lançados pelo órgão oficial de Turismo do Porto e Norte, que produziu um Guia sobre a oferta de Ciclovias, Ecovias e Ecopistas no norte de Portugal. O material é bem detalhado e completo, com informações bastante úteis.

Mais ao sul do país, na capital Lisboa, a mobilização também tem sido importante. A Câmara Municipal de Lisboa apresentou em 2017 as suas metas para tornar a capital numa cidade ciclável até 2025 e mudar radicalmente o cenário apontado pelo Censo de 2011, que mostrou que as bicicletas representavam, na capital, apenas 0,2% do total das deslocações pendulares (casa-trabalho). O objetivo é criar projetos, programas e legislações específicas para que as bicicletas passem a representar uma fatia de 7% em 2020 e 15% em 2025. Os números são bem agressivos, principalmente quando comparados com aqueles anunciados por outras capitais já mais maduras em termos de ciclismo, como Londres (5% até 2026) e Paris (15% em 2020).

Iniciativa "Sexta de Bicicleta" da MUBi. Imagem: Divulgação.

A MUBi, Associação Pela Mobilidade Urbana em Bicicleta, uma bastante ativa organização não-governamental, considera que é o momento de os municípios portugueses apostarem corajosamente em formas ativas de mobilidade, das quais a bicicleta é um exemplo, e de proporcionarem às populações redes abundantes de ciclovias. De acordo com a entidade, a indústria portuguesa é a maior exportadora de bicicletas da Europa, com vendas anuais de €315 milhões. Além disso, o país é o terceiro maior produtor de bicicletas e acessórios da Europa e um dos 10 primeiros do mundo. Ou seja, se não bastassem os apelos de redução de tráfego e de uso mais racional da matriz energética, além de uma série de outros ligados à saúde e sustentabilidade, apostar na indústria da bicicleta traz ganhos gigantescos na geração de renda e de empregos. Não à toa, a ECF – European Cyclist Federation (Federação Européia de Ciclistas), acaba de desenvolver e lançar um documento amplo com o apoio de entidades igualmente representativas de diversos países em favor do uso da bicicleta como forma de mobilidade (EU Cycling Strategy – Recommendations for Delivering Green Growth and an Effective Mobility in 2030).

Eu, aqui de Ovar, sigo fazendo a minha parte. A prática de pedalar por São Paulo atravessou o Atlântico e faz com que eu continue a ver as cidades, ruas e pessoas de forma mais próxima e humana. Se comecei com Fernando Pessoa, termino com Almir Sater. “Ando devagar, porque já tive pressa…”

***
Marcos Freire mora com a família em Ovar, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país, trocou, na virada deste ano, o pedal rotineiro em São Paulo pelos novos caminhos de Portugal. Marcos faz sua estreia no São Paulo São, onde passa a escrever quinzenalmente.

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