Parque Augusta está lindo, mas por que só o centro merece?

Área de 23 mil m² passou a ser do poder público municipal em 2019. Totalmente acessível, conta com espécies arbóreas nativas e exóticas. Foto: SECOM / PMSP. Viva o Parque Augusta.

Visto isoladamente é uma grande conquista pelo direito à cidade e um exemplo de como se pode melhorar o ambiente urbano. A criação de áreas verdes públicas em regiões adensadas, onde há mistura de habitação com comércio, serviços e lazer é uma necessidade em São Paulo e um modelo a ser repetido.

O Parque Municipal Augusta “Prefeito Bruno Covas” no centro da capital. Foto: SECOM / PMSP.

O parque é resultado de vinte anos de mobilização da sociedade e de aperfeiçoamento da legislação urbanística. É um dos parques previstos no Plano Diretor Estratégico (em 2002 e 2014) e sua implantação utilizou os instrumentos por ele criados, como a transferência do direito de construir. Representa um ganho para o centro expandido, particularmente para a Subprefeitura da Sé, onde vivem cerca de 430 mil paulistanos.

Mas, nesse momento de celebração, não posso deixar dar a voz ao Padre Ticão, que infelizmente já não está mais entre nós (faleceu em janeiro), reproduzindo um diálogo que tivemos em 2014.

Após eu defender a importância do Parque Augusta, ele disse: “se o prefeito gastar cem milhões [valor que as incorporadoras Cirela e Setim pagaram pela área em 2013] para fazer esse parque, eu vou organizar o povo da Zona Leste para uma grande manifestação na porta da prefeitura. Para a periferia, o discurso é que faltam recursos para o mínimo. Dinheiro que sobra no centro.”

 Sanitários públicos, cachorródromo, arquibancada e deck elevado também integram o  conjunto. Foto: SECOM / PMSP.

Inauguração do Parque Augusta no último sábado, dia 6. Foto:  SECOM / PMSP.

Durante quase quarenta anos, Ticão lutou por direitos sociais em um trabalho de base em sua igreja São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo. Depois de um forte envolvimento com a luta pela moradia, ampliou sua pauta por direitos. Ele dizia: “Não precisamos só de moradia. Precisamos de saúde, educação, centros culturais, parques, espaço público. Tudo isso que vocês têm no centro, nós precisamos na periferia.”

É evidente que, do ponto de vista da redução das desigualdades urbanas, ele estava certo. Cerca de 93% dos 168 novos parques previstos no Plano Diretor de 2014 estão nos distritos de maior vulnerabilidade, onde deveria ser prioritária a implantação de parques e outros projetos de qualificação urbana.

Dezenas de glebas destinadas a parques na periferia aguardam desapropriação ou obras de implantação, como os parques dos Búfalos (Cidade Ademar), da Fazenda da Juta (Sapopemba), da Brasilândia (Freguesia-Brasilândia) e da Luta dos Queijadas (Perus), entre muitos outros.

Parque doa Búfalos: a área era uma fazenda que, até 1992, acomodava os animais que dão nome ao parque. Foto: Divulgação.

Um dos objetivos do PDE (Plano Diretor Estratégico) é reduzir as desigualdades da cidade e isso só será alcançado priorizando os investimentos públicos nas áreas de maior vulnerabilidade. Mas a prefeitura continua reproduzindo a lógica tradicional de concentração dos investimentos nas áreas mais privilegiadas, como mostrou o discutível investimento de R$110 milhões no Vale do Anhangabaú.

Isso não significa que o Parque Augusta não deveria ser implantado. Ele se tornou um símbolo da luta por mais parques na cidade. Abrir áreas públicas verdes no meio da selva de concreto é fundamental para o equilíbrio urbano, ainda mais em uma área com tanto valor histórico e ambiental. Mas implantado isoladamente, sem a definição de um plano de criação de novos parques que contemple todas as regiões, ele reforça a desigualdade.

É urgente a prefeitura elaborar, de forma participativa, o Plano Municipal de Áreas Verdes, proposto no PDE há sete anos e não implementado, para estabelecer a prioridade dos investimentos públicos em novos parques, considerando o custo-benefício e um melhor equilíbrio entre as regiões da cidade.

 Abrir áreas públicas verdes no meio da selva de concreto é fundamental para o equilíbrio urbano. Foto: SECOM / PMSP.

Nesse sentido, é necessário analisar o custo real de implantação do Parque Augusta, o mecanismo de transferência do terreno para a prefeitura e se não havia alternativas melhores e menos onerosas.

Quando as incorporadoras propuseram “doar” o terreno de 24 mil metros quadrados para o município, elas receberam não os cem milhões de reais que gastaram em 2013 e que escandalizavam o Padre Ticão (R$ 163 milhões, em valores atualizados), mas R$239 milhões em potencial construtivo (em valores atualizados).

Para incorporadoras, potencial construtivo é o mesmo que dinheiro. Ao invés de pagarem a outorga onerosa devida ao Fundurb, as empresas utilizam as certidões de potencial construtivo transferido do terreno do Parque Augusta para aprovarem seus empreendimentos.

Esse valor (R$239 milhões), que deixa de entrar no Fundurb, seria utilizado em intervenções que, prioritariamente, se a lei fosse cumprida, deveriam reduzir a desigualdade socioterritorial da cidade.
O Parque Augusta se tornou um símbolo da luta por mais parques na cidade. Foto: SECOM / PMSP.

A doação de terrenos para parques, em troca da transferência de potencial construtivo é um instrumento previsto no Plano Diretor que pode ou não ser interessante para o município, a depender do cálculo da contrapartida, que depende de fatores como o valor do terreno no cadastro municipal.

Cabe à prefeitura e aos órgãos de controle avaliarem, em cada caso, se a contrapartida é interessante para o poder público, ou se é melhor utilizar outro instrumento para obter a área, como a desapropriação.

No caso do Parque Augusta, a transferência do potencial construtivo foi prejudicial ao erário público e altamente vantajosa para os proprietários do terreno. Eles se livraram de uma área que tinha inúmeras restrições urbanísticas, ambientais e arqueológicas, recebendo um valor 46% superior ao que pagaram, descontada a inflação.

A área tinha mata nativa, era tombada e gravada como Zona Especial de Interesse Ambiental (Zepam), com coeficiente de aproveitamento de 0,1, estava destinada a parque por duas leis municipais e tinha um forte movimento social, cultural e urbano que se opunha a qualquer empreendimento imobiliário, com o apoio de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público, da mídia e de muita gente famosa.
É urgente a prefeitura elaborar, de forma participativa, o Plano Municipal de Áreas Verdes, proposto no PDE há sete anos e não implementado. Foto: SECOM / PMSP.

Na verdade, a propriedade tinha se tornado um verdadeiro “mico”. Os incorporadores tentavam aprovar um projeto baseados em um “direito de protocolo” antigo, com escassas chances do empreendimento vingar.

Nessas condições, eles receberam um presentão da municipalidade e com muita satisfação aplicaram onze milhões para implantar o belo, mas pequeno, parque de 2,4 hectares que a cidade recebeu, a peso de ouro (R$ 10 mil o metro quadrado).

Com os quase R$ 240 milhões que São Paulo investiu, seria possível obter terrenos e implantar dezenas de parques previstos. Por exemplo, a desapropriação dos 35 mil metros quadrados do Parque da Fonte, no Morro do Querosene (Butantã), custou cerca de cinco milhões, 2% do que se gastou no Parque Augusta.
Servidores em protesto contra a reforma da previdência municipal durante inauguração do Parque Augusta, no Centro de SP, no sábado (6). Foto: Felipe Rau.

Como morador do centro expandido, estou feliz com o novo parque, que vou frequentar com satisfação, embora sempre me lembrando dessa conversa com o Ticão.

Mas como um gestor preocupado com uma boa utilização dos recursos públicos e com a redução das desigualdades urbanas fica uma interrogação: não podíamos ter encontrado uma solução melhor?

***
Nabil Bonduki, é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo. Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo.

 

Tags

Compartilhe:

Share on facebook
Share on twitter
Share on pinterest
Share on linkedin
Share on email
No data was found

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Categorias

Cadastre-se e receba nossa newsletter com notícias sobre o mundo das cidades e as cidades do mundo.

O São Paulo São é uma plataforma multimídia dedicada a promover a conexão dos moradores de São Paulo com a cidade, e estimular o envolvimento e a ação dos cidadãos com as questões urbanas que impactam o dia a dia de todos.