Pedalar ou não pedalar?

A melhor resposta para o dilema, portanto, é o bom e velho “depende”. Dias atrás, o governo português alterou o decreto que trata do Estado de Emergência no país para que os pontos de serviços de manutenção e conserto de bicicletas, bem como a venda de peças e acessórios, possam funcionar normalmente. Vale lembrar que há uma série de outros estabelecimentos, como restaurantes, bares, cinemas, teatros, por exemplo, que devem permanecer de portas fechadas. A decisão de estender o benefício para as oficinas e lojas de bicicletas atende às demandas de entidades e associações de classe, que pediam o mesmo critério adotado para as motos e carros. Globalmente, a movimentação pela abertura também envolveu instituições como a CONEBI  (Confederation of the European Bicycle Industry) e a ECF (European Cyclists’ Federation). Então podemos sair pedalando? Depende! A decisão da abertura do setor de peças e serviços para as bicicletas foi um importante reconhecimento das magrelas como meio de transporte, principalmente em tempos em que o transporte público de massa, quando em operação, apresenta um risco pela maior proximidade entre os passageiros. Mas daí a sair pedalando como se estivéssemos num gostoso domingo de sol no parque, não rola.

Na França “Faire du vélo pour le loisir n’est pas autorisé” (utilizar a bicicleta para lazer não é permitido). Foto: Le Monde.

Países como a Itália e a França, bem castigados com o vírus, já impuseram grandes restrições ao uso da bike. Na terra da pizza, uso “lúdico” e recreativo da bicicleta está proibido. Para os franceses, a determinação é muito semelhante: “Faire du vélo pour le loisir n’est pas autorisé” (utilizar a bicicleta para lazer não é permitido), informou o governo francês pelo twitter. Ainda de acordo com o Ministério do Esporte de lá, “a prática do ciclismo é autorizada por motivo de trabalho, saúde ou alguma situação emergencial”.  Aqui em Portugal a regra é praticamente a mesma. Pode usar a bicicleta como meio de transporte para ir trabalhar, fazer compras ou se deslocar para o médico, por exemplo. A exceção, segundo a Federação Portuguesa de Ciclismo, fica com os atletas profissionais de alto rendimento, que podem treinar ao ar livre, mas sempre sozinhos e em áreas com pouca aglomeração. Ainda assim, a FPC suspendeu, até 31 de maio, todas as provas regionais, nacionais e internacionais que aconteceriam em solo português, em todas as modalidades. Ao todo, estão canceladas ou adiadas cerca de 200 competições.

Os pesquisadores estão pedindo aos políticos que permitam caminhadas e ciclismo seguros durante a pandemia de Covid-19. Foto: Alvarez / istock.

Na Inglaterra, um grupo de cerca de 50 acadêmicos e especialistas em saúde pública e transportes enviou carta aberta ao primeiro ministro Boris Johnson pedindo apoio ao uso da bicicleta (Researchers call on government to enable safe walking and cycling during the COVID-19 pandemic). O documento reconhece a importância da quarentena e de todas as medidas de isolamento que estão sendo adotadas ao redor do mundo, mas reforça que pedalar não é incompatível com tais cuidados, se for feito de forma responsável e com apoio do governo. “walking and cycling can be compatible with social distancing, if people are responsible”. A carta pede, ainda, que parques e outras áreas verdes permaneçam abertos, com infraestrutura que garanta a segurança daqueles que querem usar a bicicleta para trabalhar e ir às compras (“This should involve ensuring parks and other greenspace are kept or made open and emergency infrastructure to make cycling and walking safer for travel to work and shops”). O principal executivo da associação British Cycling chegou a pedir que o uso da bicicleta seja até mesmo incentivado neste período. 

Na Alemanha, os ministros do Trabalho e da Saúde também são defensores do uso da bicicleta para a deslocação entre a casa e o trabalho e outros trajetos mais curtos, mas, assim como as associações do setor, não incentivam a prática para lazer. Por outro lado, entidades de ciclistas e clubes de ciclismo enxergam na crise uma oportunidade para importantes mudanças no futuro: “A Alemanha está percebendo o quanto depende de bicicletas em tempos ruins – e o quanto esse meio de transporte foi negligenciado nas últimas décadas. Muitas pessoas que passaram a usar a bicicleta pela primeira vez notam que dificilmente existe uma cidade alemã onde o ciclismo pode ser realmente seguro e confortável”, declarou o diretor geral da ADFC, uma das mais relevantes entidades do setor. E algumas boas iniciativas já começam a aparecer, como em Berlim, onde as magrelas de aluguel podem ser utilizadas gratuitamente por até 30 minutos. A ADFC também se mostra otimista em relação a um possível aumento no uso da bicicleta no futuro. A associação estima que muitas pessoas que hoje passaram a ser “obrigadas” a pedalar para chegar ao trabalho ou para fazer compras não voltarão aos transportes públicos depois que passar a fase de quarentena e isolamento social.

Hugh Jackman usa uma máscara enquanto anda de bicicleta em Nova York, no período em que os casos confirmados de coronavírus na Big Apple sobem. Foto: The Image Direct.

Do outro lado do Atlântico, o prefeito de Nova Iorque, Bill de Blasio também tem dado uma forcinha para as bikes no Twitter. “@NYCMayor Plan to have some extra travel time in your commute. If the train that pulls up is too packed, move to a different car or wait to take the next one. BIKE OR WALK TO WORK IF YOU CAN” (Caixa alta foi por minha conta). Artigo do NYT mostra que o uso das bicicletas compartilhadas cresceu 67% em Nova Iorque no mês de março. Outro indicador interessante lá da Big Apple é o número de travessias de bicicleta pela ponte entre Manhattan e Brooklyn: em um único dia foram mais de 20 mil travessias, contra 14 mil no mesmo dia em 2019. A mudança acontece, principalmente, para evitar os vagões cheios do metrô. Nova Iorque tem a maior rede de ciclovias do país, com mais de 2.000 quilômetros. Lá, como cá, a crise é vista com bons olhos no que diz respeito à infraestrutura para as bicicletas no futuro: “a crise expõe a fragilidade do nosso sistema e serve como gatilho para mudanças que estamos pedindo há décadas”, declarou uma das autoridades de trânsito da cidade.

Em Buenos Aires, a demanda pelas bikes compartilhadas cresceu 30% em março, também como resultado das medidas do governo para desestimular o uso dos transportes públicos de massa. Em Bogotá, a prefeitura começou a incentivar o uso das bikes, anunciando mais de 20 quilômetros de ciclovias temporárias, espalhadas pela cidade. Também no Chile as bicicletas estão no centro das decisões relativas ao que se pode ou não se pode fazer nesta fase. O diretor do Centro de Desenvolvimento Urbano Sustentável da Universidade Católica aponta a bicicleta como alternativa para impulsionar o transporte no contexto de crise sanitária. E não apenas para ir e voltar do trabalho. “Há muita gente que usa a bicicleta como veículo de transporte de carga, incorporando alforges ao quadro ou acoplando pequenos reboques. É preciso que haja fomento desta modalidade, pois é um meio de transporte extremamente adequado para as condições que vivemos hoje”, afirmou. “É uma nova oportunidade de ‘viajar’ sem entrar em contato com o vírus”, completou.

Em Buenos Aires, a demanda pelas bikes compartilhadas cresceu 30% em março. Foto: La Voz.

De volta à minha pequena Ovar, o uso aqui tem seguido o que manda a regulamentação: algumas bikes na porta dos supermercados e gente se deslocando para trabalhar, quando há trabalho… Temos uma condição diferente aqui, uma vez que a cidade está isolada por um “cordão sanitário”, com todas entradas e saídas com barreiras policiais. Ninguém entra, ninguém sai de Ovar, sem autorização expressa ou se não pertencer a segmentos previamente autorizados (carros e caminhões de abastecimento, por exemplo). As bicicletas que antes apareciam em grupos nos acostamentos das estradas, devem estar guardadas ou rodando sobre rolos dentro de casa. Nesta fase, o importante mesmo é seguirmos em frente sem perder o equilíbrio, mesmo que por enquanto não possa ser sobre duas rodas.

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Marcos Freire mora com a família em Ovar, Portugal, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Marcos é jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país. Escreve quinzenalmente no São Paulo São.

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