Preguiça

Chegou a primavera, e com ela chega a maior festa de cores, aromas e sabores do ano. Primavera é a estação da fartura, das abóboras e abobrinhas, das acerolas e dos aspargos; dos almeirões e alhos-poró, das bananas, berinjelas, beterrabas; de brócolis, kiwis e cajus, chicórias e cogumelos, couves-flores, espinafres, favas, rabanetes; das jabuticabas, das mostardas, das nêsperas e tangerinas, dos tomates… e das alcachofras.

Sou louca por alcachofras, mas comê-las é um esforço tão grande que desisto antes mesmo da compra. Temperar e cozinhar até que é simples, mas depois, destacar uma infinidade de pétalas para saborear uma mínima parte, aquele azeite todo lambuzando os dedos, os espinhos grudados ao fundo, as sobras se avolumando no prato… tanto trabalho não me parece valer o prazer.

O mesmo sentimento tenho em relação a pinhões e castanhas portuguesas: sou capaz de comê-los de joelhos, como também de joelhos sou capaz de implorar a alguém que os cozinhe e descasque para mim. Nozes, avelãs, e amêndoas, que adoro, só entram em casa se tiverem deixado suas cascas em outro lugar (já amendoins não entram de modo algum – vestidos, nus, torrados ou crus).

Bananas e mexericas são quase parte da família – existem frutas mais perfeitas? Vêm naturalmente porcionadas, embaladas e prontas para um consumo que não requer nem preparo nem instrumentos, e que tampouco suja as mãos. Agora, melancias, mangas, melões… que trabalheira! E o que dizer da jaca? Se depender de mim, fica com os amendoins.

Faço essas reflexões enquanto, sentada à mesa da cozinha, olho um abacaxi já maduro na fruteira. Pingo de mel. Revirando minha memória, lembro de uma doçura e um perfume únicos, e tento fazer dessa lembrança um estímulo para descascá-lo. Respiro fundo. Levanto, vou até o armário abaixo da pia e procuro na gaveta minhas tábuas de corte – como é mesmo? Vermelha para carnes, verde para legumes e verduras, azul para temperos, amarela para frutas. 

Americanos são mesmo imbatíveis quando se pensa em praticidade. Lembro da primeira vez em que, ainda na década de oitenta, estive em uma loja de utensílios para cozinha nos Estados Unidos – precisei ser resgatada, do contrário encheria duas malas com os mais diversos instrumentos (muitos úteis, outros nem tanto): mil tábuas e potes coloridos, facas para todo tipo de corte, raladores de queijo, de alho e de noz moscada; moedores de carne, de café, de sal e de pimenta; cortadores especialmente desenhados para maçã, para banana, para ovo, para kiwi (!!!); fatiadores de melancia, de abacate, de tomate; infinitos picadores e espátulas; furadores de lata, de abobrinha e de coco; descascadores de legumes, de gengibre, de… abacaxi!!! 

Volto rapidamente ao mesmo armário, abro portas, reviro gavetas e… yes! Meu descascador de abacaxi! Pego uma faca grande, de serra, apoio tudo na bancada lateral à pia, lavo a fruta e a coloco deitada sobre a tábua amarela. Corto a coroa pela base e ponho de lado; reposiciono o abacaxi, agora em pé, e sobre ele apoio o descascador, em cuja haste seguro como se empunhasse um cetro. Ajusto para que o furo na base da peça, um disco de bordas serrilhadas, fique exatamente em volta do miolo da fruta e faço uma leve pressão – pronto, encaixado.

Seguro o abacaxi com uma mão e com a outra começo a girar a haste, cuja forma em “T” me faz intuir o movimento. E então a magia acontece: a cada rotação, o disco desce em espiral separando a casca do miolo e da polpa, que na sequência já vai sendo transformada em pequenos cubos pelas oito lâminas verticais do meu instrumento redentor.

O perfume invade a cozinha e sou tomada por uma alegria quase infantil. Jogo coroa e cascas no lixo, corto em rodelas o miolo, extraído inteiro, e retiro do armário duas tigelas de vidro: na menor, coloco as rodelas; na maior, os cubinhos da fruta. Uma rápida lavagem nos utensílios e pronto!, tudo em ordem.

Com uma colher, coloco alguns dos pequenos cubos em um pote de sobremesa e me sento novamente. O abacaxi está doce e macio, e a proporção daqueles pedaços é perfeita para minha boca.

Como são práticos, esses americanos.  😉

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Valéria Midena, arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção, escreve quinzenalmente no São Paulo São. Ela é autora e editora do site SobreTodasAsCoisas.

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P.S. Refleti muito sobre a pertinência de escrever um texto com esse tema. Tive receio de, em tempos tão sombrios, discorrer sobre algo que parecesse fútil ou alienado. Mas cheguei à conclusão de que, justamente por estarmos todos atravessando esse difícil período – exaustos, tristes e desesperançados – é ainda mais necessário conferir um pouco de leveza ao nosso cotidiano. Assim, espero que a leitura desta coluna cumpra esse papel, proporcionando alguns instantes de alegria a cada um de seus leitores.

 

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