Recuerdos da menina da cidade grande

Não sou deste tempo, mas ele me encanta. O privilégio de alguns anos a mais é lembrar-se de longe, trazendo para o aqui e agora o papel de embrulho dos pães, que eram enrolados torcidinhos nas pontas e deixados na janela basculante da cozinha, ao lado do leite no litro de vidro que, de tão transparente, trazia o branco mais alvo para casa todas as manhãs.

Mas é mais que isto. É lembrar-se do “Rei dos Bigodinhos” e de  assistir o barbear: espuma e navalha no gogó do pai e a cinta de couro onde a navalha era afiada a toda hora, para ficar no ponto. Álcool, talco ou velva?

É lembrar-se dos passeios de ambulância em dia de plantão do pai médico no pronto-socorro da Paulista, uma avenida longa e estreita, com casarões e alguns prédios altos como o do Fasano, o tal Conjunto Nacional, tinindo de novo, com aquele cinemão.

Restaurante Fasano, no Conjunto Nacional, nos anos 60. Foto: Acervo IMS.

É ter se jogado no feno do ferreiro que existia na Avenida Doutor Arnaldo, próximo ao Cemitério Araçá, para assistir o trato no casco dos cavalos e a rotina do trocar ferraduras, entre o cheiro de pelo das crinas cortadas para os carroceiros ativos da cidade.

É ter no ouvido o som de Paulinho Nogueira saindo da vitrola, é decorar as músicas do disco da Elizeth Cardoso. É saber que o João Sebastian Bar era lugar de quem entendia a vida, que o Clubinho era um local para se demorar e voltar tarde e que o Rosa Amarela não era lugar para ir acompanhado. Dava dó. Patroa em casa com os filhos e meu pai folgando em seu Karman-Ghia turquesa pela boemia paulistana.

É ter na memória recente que a pizza foi para os bairros classe média com a Zi Thereza e suas clássicas mezzo mussarela com tomate por cima e orégano e mezzo aliche, para tomar com Guaraná Champagne Antarctica.

Imagem: reprodução.

É ter na memória que havia mamona para brincar, rio para molhar os pés ao lado de casa, praça que podia ir sozinha, segurança como decreto que a rua era nossa e a cidade tinha cidadãos livres de grades, blindados, celulares, aparatos de seguro de vida e benzer-se ao sair e dar-se por feliz por voltar; a rotina do ir e vir, transitar, pegar o ônibus elétrico para ir ao Cine Paulista e comer o primeiro hot-dog da cidade, na Rua Augusta.

É lembrar que assistia da janela do meu quarto o movimento da rua parada e tinha medo do mistério maior que era a noite escura que fechava o dia para um porvir eterno, impreguinando de medo esta menina que tinha vergonha, ficava vermelha e se fechava em copas, grudada na mão grande e fofa daquele que era sua proteção, seu grude com a vida na cidade grande.

***
Marina Bueno Cardoso, jornalista com passagens pelos principais veículos da impresa, publicou em 2015 “Petit-Fours na Cracolândia” pela Editora Patuá e “Descansar o Mundo”, Editora Penalux – 2018, com crônicas publicadas no São Paulo São.
     

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