Refugiadas superam estigma e empobrecimento para reconstruir vida em São Paulo

Colombiana Maria Clara trocou conforto e estabilidade financeira por quitinete no Brasil para fugir das Farc; Lara Lopes deixou apartamento e carro em Moçambique por ser discriminada por sua orientação sexual; em São Paulo, elas enfrentaram barreiras por serem refugiadas, mas não se arrependem da mudança.

Há pouco mais de três anos, Maria Clara Guzmán vivia em um apartamento amplo, com dois quartos, em Ciudad de Pasto, na Colômbia (840 km de Bogotá), junto com suas duas filhas pequenas e o marido Cristiano – que acabava passando pouco tempo com elas por trabalhar em outra cidade. Ainda assim, eles tinham uma vida bastante confortável, jantavam fora com frequência e não enfrentavam qualquer dificuldade financeira.

Hoje, ela e a família se apertam em uma quitinete no Brás (centro-leste de São Paulo) e dividem uma única cama. O conforto diminuiu, é verdade, mas, diante do que passaram desde 2014, Maria Clara e Cristiano dizem que hoje estão “tranquilos e felizes”.

“O Brasil nos trouxe a paz e a estabilidade emocional que nos faltavam na Colômbia. Aqui somos mais unidos, mais felizes. É um país de oportunidades, com pessoas muito boas”, afirma Maria Clara à BBC Brasil.

A família chegou a São Paulo em dezembro de 2014 após três meses de perambulação entre Colômbia, Venezuela e Brasil na busca por um lugar seguro longe das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) – eles haviam sido sequestrados pelo grupo naquele ano e conseguiram o status de refugiados em terras brasileiras depois de uma longa jornada.

A história de Lara Lopes é, em certo grau, similar à da família Guzmán. Aos 33 anos, ela é formada em Administração de Sistemas e morava em Maputo, capital de Moçambique, com a namorada. O “problema” começava aí.

No país africano, a homossexualidade ainda é um enorme tabu. A discriminação a impedia de conseguir trabalho. Depois de uma tentativa de suicídio da parceira, Lara decidiu, então, buscar um lugar onde pudesse “ser quem era”.

A inspiração pelo Brasil veio das novelas, que faziam muito sucesso em Moçambique e, recentemente, vinham abordando as questões LGBT.

Foi assim que, em 2013, ela desembarcou em São Paulo. Trocou o conforto que tinha em Maputo pelas incertezas da vida de refugiada na capital paulista: passou fome, dormiu em igreja, limpou banheiros, e até hoje enfrenta algumas dificuldades. Mas não se arrepende da mudança.

“O Brasil me fortaleceu, me deixou ser Lara. Resgatou a dignidade que eu tava perdendo. Sou muito grata ao Brasil por poder falar sem medo: eu sou homossexual”, diz à BBC Brasil.

Atualmente, existem 9.552 refugiados regularizados no Brasil – nos últimos cinco anos, segundo dados do Ministério da Justiça, foram mais de 89 mil solicitações de refúgio. O processo é burocrático, longo e criterioso, então poucos efetivamente conseguem, como foi o caso de Lara e da família de Maria Clara.

Não há dados oficiais sobre quantos refugiados conseguem trabalho no país, mas a dificuldade em se empregar é uma das principais queixas deles.

Um programa da ONU chamado “Empoderando Refugiadas” conseguiu obter trabalho para 21 das 81 mulheres participantes até o momento.

A maior dificuldade, segundo a entidade, é o idioma, seguida pela validação do diploma dos refugiados e, por último, a resistência das próprias empresas em empregar os estrangeiros.

Sequesto e fuga

A quitinete onde Maria Clara mora hoje com o marido e as filhas é bem simples – esquenta bastante no verão e falta espaço para tudo, até para as filhas brincarem. Mas a colombiana se sente “no paraíso” agora.

Cristiano e Maria Clara tinham uma vida confortável e estabilidade financeira na Colômbia Foto: BBCBrasil.Há três anos, ela se viu sob a mira de guerrilheiros junto com Valentina, com 2 anos e meio na época, e Rafaela, que tinha apenas alguns dias de vida. Cristiano, seu marido, trabalhava em uma exportadora de madeira e foi pego pelas Farc quando voltava de uma entrega. Ele passou semanas amarrado, em cativeiro, sem contato com a família.

Membros do grupo foram, então, até o apartamento onde estavam Maria Clara e as meninas e lá se mantiveram por quase um mês, exigindo um resgate de US$ 500 mil pelo marido.

“As meninas choravam muito. A Rafaela tinha apenas dez dias de vida, precisava de atenção”, relembra Maria Clara.

Cristiano foi eventualmente solto e, durante a ação policial, um líder guerrilheiro acabou morto. Isso despertou temores de uma retaliação contra a família Guzmán.

“A polícia disse que não podia me dar segurança. Só me deram um colete à prova de balas e um celular. Então pedi para sair do país. Aí me mandaram para a Venezuela”, relata Cristiano.

A estadia no país vizinho foi marcada por mais dificuldades: desde a demora para obter refúgio, o que os impedia de obter trabalho, até uma piora na qualidade de vida.

“A gente morava num quarto de hotel, quente, pequeno. Valentina pegou chikungunya, ficou no hospital. Nós quatro tivemos anemia. Foi um período difícil. Eu tenho uma doença (lúpus) e precisava de remédio, mas não encontrava”, diz a colombiana.

Quando a família soube que guerrilheiros das Farc ainda estavam em seu encalço, decidiu que era hora de fazer as malas novamente. “Deixamos tudo, só pegamos uma mala e documentos”.

Ficaram um mês em Caracas até conseguir ajuda da organização Cáritas para viajar ao Brasil. Passaram por Boa Vista e Manaus até conseguirem embarcar para São Paulo.

Na quitinete onde vivem hoje, Maria Clara, Cristiano, Valentina e Rafaela dormem juntos Foto: BBCBrasil.

Na capital paulista, mesmo regularizados como refugiados, nenhum dos dois conseguia emprego, o que os forçou a morar em albergues – Cristiano tinha que dormir no quarto masculino, enquanto a mulher e as meninas ficavam no feminino. Depois, mudaram-se para um casa de acolhida para estrangeiros onde moravam todos em um quarto minúsculo e, finalmente, quando Maria Clara conseguiu um trabalho, alugaram a quitinete no Brás.

Agora, sentem-se seguros. “É uma coisa muito forte sentir que chegamos a uma terra onde a gente sentia que ia poder ficar em segurança”, afirma a colombiana.

“Somos pessoas normais agora. O conflito interno no nosso país nos machucou muito. Passamos por momentos difíceis, mas emocionalmente estamos muito melhores.”

Preconceito e quase suicídio

Enquanto isso, a moçambicana Lara evitava contar às pessoas no Brasil o real motivo de ter deixado seu país natal. “Eu dizia que tinha vindo por causa da guerra”.

Mas a verdade é que ela já não aguentava mais viver num país onde era vista como “abominação” e “obra do diabo”.

No Brasil, Lara passou a falar sobre sua orientação sexual e agora quer ser ativista da causa LGBT Foto: BBCBrasil.“Você não consegue um emprego (em Moçambique), mesmo que tenha faculdade. Muitos dos homossexuais que conheço trabalham por conta própria, ou trabalham com alguém que luta pela causa. Outras fingem que não são (gays)”, diz Lara.

“Eu ia a lugares, e as pessoas comentavam. Mesmo que tentasse ser forte e ignorar tudo isso, chegava em casa e desabava em lágrimas.”

Por muito tempo, Lara se trancou em casa sem fazer nada. Católica fervorosa, chegou a pedir a Deus que lhe tirasse a vida se ela realmente fosse “tudo aquilo que as pessoas falavam”. O alento sentido ao iniciar um relacionamento com a namorada Myra foi abalado por uma ação policial.

“Nos levaram para a delegacia porque a Myra estava dirigindo sem carteira de motorista. Normalmente, eles só aplicariam uma multa, mas quiseram nos levar. Colocaram ela numa cela, e o próprio delegado a assediou. Ele disse que ela tinha que me deixar porque ele poderia lhe dar coisas melhores. Um agente da lei! Aí você começa a pensar: se um agente da lei faz isso, o que um civil pode fazer?”

Assim, Lara optou por tentar a vida no exterior.

“Se eu continuasse em Moçambique, ia chegar num ponto em que me suicidaria. Eu já pensava em suicídio, a Myra chegou a tentar (se matar). Eu ia esperar que algo acontecesse?”

“Aprendi uma coisa: não vou mais ser submetida a esse tipo de coisa. Fiz isso a vida toda. Deixei que as pessoas fizessem de mim o que elas quisessem. Aqui (no Brasil) encontrei espaço para ser eu mesma, sem tabu, sem nada. Hoje sou uma pessoa mais alegre.”

Estigma de ‘refugiado’

Lara chegou ao Brasil em 2013, e Maria Clara veio no fim de 2014. As duas hoje vivem situação financeira muito mais difícil do que a que tinham em seus países, mas isso não as incomoda. O problema ao longo desses anos foi carregar o estigma de “refugiadas”.

Hoje, Lara trabalha para ajudar outros refugiados a conseguirem emprego (Foto: Divulgação Projeto "Estou Refugiado") Foto: BBCBrasil.“A palavra ‘refugiada’ no Brasil tem um peso muito forte, dificulta tudo. Há algumas vagas (disponíveis) de garçom, de camareira, de empregada doméstica. Mas vagas mais qualificadas nunca aparecem para os refugiados. E, olha, te garanto que a maioria deles tem faculdade, mestrado até”, argumenta Lara.

Pela dificuldade em validar seu diploma no Brasil, o primeiro emprego da moçambicana foi como camareira em um hotel em São Paulo. Lá, ela conta que, diferentemente do seu país de origem, não sofreu preconceito por ser homossexual – mas sim por ser refugiada e negra.

“Tudo que era trabalho braçal era dado para nós, refugiadas”, conta.

“Se um hóspede suja o apartamento, por que tem que chamar a Lara para limpar? A pessoa tinha sujado a parede com bosta e tudo. Por que só nós refugiadas éramos chamadas para essas tarefas? Por que quando some alguma coisa, eles só chamavam nós refugiadas para perguntar?”

Maria Clara e Cristiano tiveram as mesmas dificuldades para conseguir emprego. “Já tentei todos os tipos de vaga. Não sei como romper esse tabu, porque nós só queremos emprego”, afirma Cristiano, que é especializado em Comércio Exterior e fala quatro línguas (inglês, alemão, espanhol e português).

Programa "Empoderando Refugiadas" da ONU virou um minidocumentário contando histórias de algumas mulheres que participaram do projeto. Foto: Fellipe Abreu / Empoderando Refugiadas.“Se para mim, que sou branco, tem problema, imagina para as pessoas negras.”

Hoje, ele dá aulas particulares de inglês e espanhol e fica em casa cuidando das crianças, enquanto Maria Clara trabalha em uma agência de viagens. Ela conseguiu um emprego em março, depois de anos enviando currículos.

“Eu enviava o currículo e ninguém me ligava. Tentei emprego de camareira, mas pediam experiência. Nós estamos começando uma nova vida do zero, então não temos como ter experiencia nessas áreas”, conta a colombiana.

Lara e Myra, que hoje é sua esposa - as duas se casaram no Brasil. Foto: Fellipe Abreu, Empoderando Refugiadas.Lara e Maria Clara contaram com a ajuda do programa de empoderamento de refugiadas da ONU. Maria Clara trabalha fazendo a comunicação entre clientes que falam espanhol e operadores de turismo, e Lara trabalha no projeto “Estou Refugiado”, revisando currículos e auxiliando outros refugiados a conseguirem entrar no mercado. Sua namorada Myra também veio ao Brasil, e as duas hoje são casadas.

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Por Renata Mendonça da BBC Brasil em São Paulo.

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