Revendo a Ditadura, ‘Trago Comigo’ mistura ficção e documentário

Procurando resgatar traumas da Ditadura Militar brasileira (1964-1985) através da amálgama entre ficção e documentário, o drama Trago Comigo, originário da série homônima de 2009 da TV Cultura, disseca as memórias pessoais de Telmo Marinicov, um diretor de teatro que se vê diariamente assombrado por espectros do passado. Dirigido pela renomada cineasta Tata Amaral, o longa foi uma das atrações do  10º Festival de Cinema-Latino Americano de Sâo Paulo, que aconteceu na capital.

O filme começa explanando os anseios pessoais do protagonista, interpretado por Carlos Alberto Riccelli, que, em seu passado, integrou um movimento de luta armada contra o regime militar. Sua devoção à guerrilha era equivalente a seu amor por Lia, também integrante do movimento e que acabou tendo a vida tomada pelos militares. No contexto temporal do longa, Telmo se vê em um limpo espiritual, afastado de sua atividade artística como diretor teatral e em um relacionamento conturbado com uma jovem atriz. 

Apesar de baseado na série, o Trago Comigo abrange outras facetas do protagonista, como conta a diretora Tata Amaral em entrevista concedida à Brasileiros: “ O foco da série tinha mais a ver com uma superação do Telmo e a relação dele com a jovem atriz. Já no filme, a ideia é muito mais voltada para o trauma do protagonista com a Ditadura Militar”, conta a diretora, que também esteve a frente de Hoje (2011), Antônia (2006), Através da Janela (2000) e Um Céu de Estrelas (1996)

A luz no fim do túnel de Telmo é acendida quando um amigo o procura para ajudar a reerguer um antigo teatro. Para isso, pede ao personagem principal para elaborar um espetáculo a fim de lotar o estabelecimento e recolocá-lo no alto patamar das casas artísticas. O diretor aceita, colocando como condição sua completa autonomia para decidir o tema da peça, a produção do texto e a seleção dos atores.

O diretor então elabora um espetáculo quase que autobiográfico, encarando de frente seus temores passados e revirando as entranhas da luta armada no período da repressão militar. Juntamente ao terror dos anos de chumbo, Telmo descreve na peça como se deu sua relação com Lia e os desdobramentos e circunstâncias de sua morte. 

A peça elaborada por Telmo suscita diversas questões em torno do regime político que vigorava na época, além de uma reflexão ética sobre o papel das células guerrilheiras contra os militares. Em certo momento dos ensaios, os atores questionam uma cena de um assalto a banco, retratado como uma vitória pelo diretor. “Eu quis contar para as pessoas que, naquela época, era outra coisa. Eles tinham uma justificativa maior que era construir uma sociedade mais justa. Mas também questiono totalmente a guerrilha”, explica Tata.

Durante o desenvolvimento da trama são intercalados relatos verdadeiros de pessoas que sofreram com a perseguição militar durante o regime, contextualizando historicamente o espectador e dando um tom documental ao longa. Em um dos depoimentos mais marcantes, um ex-militante conta como seu pai foi torturado até a morte pelos militares enquanto sua mãe ouvia todos os seus gritos em um cômodo instalado propositalmente abaixo da sala onde seu marido agonizava.

As declarações expostas no filme são fundamentais para entender as circunstâncias que submergiam a sociedade brasileira na época. Perseguição ideológica, sequestro, prisões ilegais, tortura, ‘desaparecimentos’ forçados, entre outros vícios cruéis eram fatores cotidianos durante o governo militar, principalmente após o Ato Institucional nº 5, que intensificou ainda mais a violência.

Para a diretora do filme, o Brasil possui certa resistência em relembrar de forma crítica o passado, e obras como Trago Comigo contribuem para uma reconstrução das memórias, justamente para que elas não se repitam mais. “Nós temos dificuldade em falar desse passado traumático, principalmente de uma maneira ética e não como espetáculo.”

Vale ressaltar que, durante os relatos dos perseguidos políticos, Tata Amaral se viu obrigada a censurar os nomes verdadeiros dos torturadores citados por se tratar de uma obra que possui em sua essência a ficção. “Isso interferiu diretamente no meu filme. Não existe um governo censurando, mas existe um judiciário me censurando. Foi aí que eu comecei a compreender que, o fato de nunca termos julgado e condenado os torturadores é o que determina a violência de fato que é praticada até hoje.”, concluiu. O cinema já o fez, agora resta à Justiça fazer o seu papel e condenar os anônimos de farda.

O trailer: https://youtu.be/vGLG0qWasf8

Elenco: Carlos Alberto Riccelli, Emílio Di Biasi, Felipe Rocha, Georgina Castro, Gustavo Brandão.

Alex Tajra na Revista Brasileiros.

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