São Paulo: de zero a 4 milhões de foliões nas ruas, em dez anos. Como lidar com esses números?

Em 2006, o colunista José Simão, da Folha, debochava da cidade vazia: “Carnaval de paulista. Tem uma amiga que tá louca para São Paulo ficar vazia para ir ao shopping comprar comida pra tartaruga! Rarará.”

Em 2018, a manchete do G1 é: “Pré-Carnaval em SP reúne quase 4 milhões de foliões no fim de semana” Como entender essa tremenda mudança de comportamento que se operou na cidade em apenas uma década?

Não se trata apenas do carnaval

A cidade mudou, as pessoas mudaram e isso não é só no carnaval.

A cidade que dava as costas para seu passado e para seus espaços públicos está buscando redescobrir-se – passeios, arquitetura, gastronomia, patrimônio histórico e principalmente, as ruas e é aqui que o carnaval aparece.

No último feriado de 25 de janeiro, aniversário da cidade, foi possível constatar um pouco dessa mudança. Ciclovias e parques lotados. Museus e restaurantes lotados. Paulista lotada. Bares e shows lotados. Um programa ao vivo da rádio CBN sobre a cidade, também lotado. Um debate sobre arquitetura do centro com urbanistas e jornalistas no SESC 24 de maio. Lotado.

Foto: Mauro Calliari.Está na cara que os paulistanos estão querendo sua cidade de volta. Mas, como tudo em São Paulo, isso acontece freneticamente.

O carnaval é, portanto, um pedaço das coisas que tínhamos perdido e estamos redescobrindo.

Se durante décadas, bacana era sumir da cidade atrás do carnaval em Recife, Salvador, Rio ou dos bailes do interior, bacana agora é colocar uma fantasia de noiva ou de sereia e sair por aí atrás de um bloco. E aqui surge uma outra faceta da cidade: qualquer mudança de comportamento parece sempre desaguar numa multidão. Os shows, os jogos de futebol, as ruas, e agora o carnaval. Tudo termina em multidão. E lidar com a multidão dá trabalho.

A nova escala gera novos problemas

Quando alguns vizinhos vão atrás de um bloquinho, tudo é fácil de resolver.

Quando são quatro milhões de pessoas que dançam, comem, bebem, se deslocam até um desfile, é preciso montar uma operação de guerra: cadastramento de blocos, segurança, bloqueios, organização da segurança, licitação para organização, discussão sobre patrocínio, reescalonamento de dezenas de linhas de ônibus e até a criação de uma nova lei, a lei do xixi. E, talvez, a contribuição mais horrenda e inevitável à paisagem urbana, quilômetros de banheiros químicos.

Foto: Mauro Calliari.

O conflito também ganha nova dimensão

Com a multidão, surgem novos conflitos. Estatisticamente, em qualquer grupo grande, vai sempre existir um percentual de gente que faz coisas estranhas. Alguns beberão demais e terminarão a noite vomitando numa estação de metrô, outros vão fazer xixi no jardim de uma velhinha, outros vão vender cerveja com milho transgênico sem estarem cadastrados e, infelizmente, há quem vá ao desfile para roubar um celular ou para assediar alguém.

Os conflitos vão surgir, como vimos nas tristes mortes dos últimos dias e é preciso lidar com firmeza com essa minoria escondida na multidão. A questão é que a ainda sobrarão uns três milhões, novecentos e noventa mil que estão ali só para brincar. É por causa desses que a cidade se organiza.

Foto: Mauro Calliari.Qual é o limite para o carnaval?

Quantas pessoas  mais a cidade será capaz de acomodar? Estamos achando que quatro milhões é muito, mas quem disse não teremos ainda mais gente vindo de outras cidades nos próximos anos? Será que os cariocas e os recifenses se juntarão ao pessoal de Guarulhos e Osasco para conhecer o carnaval em São Paulo?

Se for assim, melhor começarmos já a conversar sobre o que fazer:

Para começar, a prefeitura vai precisar melhorar sua capacidade reconhecer os conflitos e investir na logísitica

A operação logística envolvida no carnaval cresceu muito mas vai ter que melhorar muito mais. Após a tragédia do menino eletrocutado e das mortes no posto de gasolina, fica claro que não dá para tratar o carnaval apenas como um evento normal.

A nova escala obriga a melhorar os processos de licitação, de segurança e, principalmente, de entender com antecedência onde estão os conflitos potenciais.

As sucessivas gestões municipais que participaram da explosão do carnaval parecem estar correndo atrás do prejuízo e vão tentando dar vazão às principais queixas de moradores, comerciantes e quem mais reclamar. Assim, os desfiles migram de um bairro para outro para tentar resolver um problema e criam outros problemas. Se os moradores da Vila Madalena e da Roosevelt conseguiram evitar que a festa fosse na frente de suas casas, serão os moradores da região da Augusta e da Batata que vão conviver com o barulho. Não há solução fácil, mas justamente por isso, é melhor se antecipar aos problemas que virão.

Afinal, a cidade reúne gente muito diferente entre si. Se alguns querem gritar durante toda a madrugada, outros querem dormir durante a noite.

Não é impossível encontrar o balanço justo, mas dá trabalho e isso é uma habilidade que vai ter que ser desenvolvida, principalmente na área designada para organizar a festa – a Secretaria de Prefeituras Regionais, que se comunica diretamente com os bairros e vai ter que fazer um trabalho melhor de balancear os desejos às necessidades da cidade.

Foto: Mauro Calliari.

É preciso entender a nova dinâmica dos blocos

Não estamos mais falando de cinco ou seis amigos que se juntam para brincar.

Estamos falando de empresários que ganham muito dinheiro com a festa. Se deixarmos,  ou se a prefeitura deixar, vamos importar tudo de ruim de outras cidades: os camarotes vendidos a peso de ouro no meio da rua, os trios elétricos que contratam seguranças para fechar áreas vip com cordas. Estrategicamente, será que não faz mais sentido incentivar os blocos menores, “acústicos”, de cada bairro, do que os gigantes com patrocinadores e artistas famosos?

Vai ser preciso antecipar essas questões e decidirmos juntos (não apenas o prefeito, que já declarou se inspirar no carnaval de Salvador) o que merece ser mantido. Na festa, há um componente comportamental – “que bom que estamos na rua”, mas não há razão para pensarmos também no componente econômico – “quem está lucrando com a festa?”.

Será que não dá para exigir um pouco mais de educação e civilidade?

Uma das cenas mais marcantes dos desfiles são as pilhas de lixo ao final de cada dia. Temos visto as equipes de limpeza municipal trabalhando para limpar tudo, mas às vezes nos esquecemos que são as pessoas que jogam esse lixo por aí. Será que as centenas de vendedores de cerveja não deveriam andar com um lixo ao lado de suas geladeiras de isopor? Será que o pessoal não consegue ficar sem tacar as garrafas de catuaba na rua?

Outro dia, alguém postou no Facebook que os eventos em cidades ditas “desenvolvidas” também terminam em lixão. Vi as imagens mas acho que ainda estamos num outro patamar de capacidade de gerar lixo cotidianamente e não há por que não combater o péssimo hábito de sair jogando coisas por aí, principalmente em grandes eventos. Aliás, você viu o vídeo dos japoneses limpando o estádio na copa do Brasil antes de irem embora?

Outra coisa são os horários. Se a festa tem horário para terminar em alguns lugares, isso não parece ser o fim da espontaneidade nem uma arbitrariedade como querem alguns. Talvez seja uma apenas uma das maneiras de garantir que quatro milhões de pessoas que brincam o carnaval não acabem com a vida das outra oito que não brincam.

Parece paradoxal que uma festa espontânea como o carnaval acabe sendo regrada por tantos regulamentos, horários e proibições, mas talvez esse seja o custo de fazer funcionar uma estrutura que mexe com a cidade inteira.

Ensaio do Bloco Bangalafumenga. Foto Edson Lopes.

Para terminar, é bom lembrar que o carnaval é, afinal, uma festa!

Para que o balanço não fique pendendo para o lado chato do carnaval – o lado em que só se fala de xixi, barulho e lixo, é preciso tratar logo da logística podermos falar das coisas boas: o encontro, a alegria genuína, o beijo, a dança e a música.

Assim é o ônus da cidade que tem gente que vai para as ruas. Assim também é o bônus da cidade que está fazendo festa e combatendo o medo da rua.

***
Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. Artigo publicado originalmente no seu blog Caminhadas Urbanas. Fotos: Mauro Calliari.

 

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