‘São Paulo, feiúra e beleza‘, na estreia da colunista Valéria Midena

Esse apreço me levou a criar, há poucos anos, o blog SobreTodasAsCoisas. Acreditando que a cada instante de nossas vidas podemos conferir beleza (e, por conseqüência, sentir prazer) e que os prazeres da alma podem vir de todas as coisas (sejam sons, imagens, atitudes, sensações ou relações), por meio do blog busco investigar e discutir esse mecanismo. E, ao dividir minhas descobertas nesse sentido, ampliar e aprofundar nossos prazeres – os de todos e os de cada um de nós. 

Por causa dos textos que ali publico, no início deste ano recebi o gentil convite do SãoPauloSão para escrever esta coluna. Com um misto de entusiasmo e orgulho, de cara aceitei – afinal, participar de um projeto que se dedica a melhorar a percepção da nossa cidade, contribuindo para fazer dela um lugar mais humano e prazeroso, faz todo sentido para mim.

Convite aceito, logo comecei a pensar no texto de estreia – e foi aí que as coisas se complicaram. Muito embora a ideia seja trazer para este espaço meu olhar estético sobre as (infinitas) coisas da vida, achei que meu primeiro texto deveria falar sobre São Paulo. Mas como falar sobre São Paulo e sobre beleza e prazer ao mesmo tempo?

Vivemos sob o senso comum de que São Paulo é feia. Há décadas, ouvimos essa feiúra  ser cantada em prosa e poesia: ‘não existe amor em SP’, a ‘selva de pedra’, ‘túmulo do samba’, ‘aglomerada solidão’, onde ‘pardais, baratas, ratos’ convivem com ‘o povo oprimido das filas’, e cujo ‘véu de fumaça’ a faz, noite e dia, uma ‘cidade tão lírica e tão fria’ (1). Em 2016, foi eleita pelo ranking do site U City Guide a 9ª cidade mais feia do mundo (no mesmo ranking, o Rio de Janeiro, ao lado de Veneza, Paris, Praga e Lisboa, ficou entre as cinco mais belas). Muito recentemente também, dois respeitados jornalistas brasileiros expressaram – um por meio de sua coluna em uma revista semanal, outro durante entrevista a um programa de TV – suas visões nada generosas sobre a (não) beleza da cidade.

Mas de que beleza estaríamos falando? Na Grécia Antiga, o conceito de beleza tinha uma dimensão estética, relacionada ao mundo das ideias e das artes; na Idade Média, passou a ter uma dimensão simbólica, vinculado ao mundo de Deus; e a partir Revolução Industrial, adquiriu uma dimensão subjetiva, atrelado ao mundo da eficiência. O conceito de beleza seria então inato e absoluto, ou apenas uma construção cultural? 

Segundo Edgar Morin (2), somos seres 100% biológicos e 100% culturais; assim, o conceito de beleza seria 100% inato e 100% cultural. Hoje, entendemos como belo tudo aquilo que nos agrada, nos encanta e nos dá a sensação de prazer; o que nos conduz a um estado de plenitude, nos permitindo resgatar nossa essência e ampliar o sentido de nossa existência. Nesse sentido, seria mesmo São Paulo tão desprovida de beleza?  

Em seu livro “O gosto” (3), investigando as origens do belo, do bom e do agradável, Montesquieu elenca diferentes prazeres que a alma humana pode experimentar: os prazeres da ordem, os prazeres da variedade, os advindos da simetria, os advindos dos contrastes, os que têm origem na razão, os que têm por base a emoção… E em certo momento ele discorre sobre o prazer do não sei o quê: “Em algumas pessoas ou coisas há por vezes um encanto invisível, uma graça natural indefinida que somos forçados a designar com a expressão um não sei o quê. Parece-me que esse é um efeito baseado principalmente na surpresa.” Em seguida, completa: “A graça encontra-se normalmente mais no espírito que nas feições do rosto; um belo rosto mostra-se de uma vez e quase nada oculta, mas o espírito só se mostra aos poucos, quando bem entende fazê-lo e na medida em que escolhe fazê-lo…”
Foto: Filipe Araújo.De fato, São Paulo não tem, nem jamais terá, a beleza emocionante e cenográfica de Veneza. Sua urbanização, orgânica e desordenada, coloca a cidade no extremo oposto da beleza elegante e simétrica de Paris. Também não vemos nela a beleza delicada e melancólica de Praga, nem a austera e racional de Lisboa. E muito mais de 400km a  separam da beleza natural e exuberante do Rio de Janeiro.

São Paulo tem a beleza do não sei o quê – uma beleza difícil, misteriosa e sofisticada. Uma beleza não óbvia, que não se encontra em suas feições, mas sim em seu espírito… e que, como bem descreve Monstesquieu, “só se mostra aos poucos, quando bem entende…” . Sua dimensão não é estética nem simbólica, mas subjetiva. É uma beleza complexa e caótica, que está nos contrastes, nas surpresas, nos movimentos e nas imperfeições. Uma beleza que não pode ser vista pelos olhos – apenas sentida pela alma. E somente uma alma curiosa, amorosa e livre será capaz de admirá-la e desfrutar, em plenitude, de todo prazer que ela oferece. 

***
Valéria Midena é arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção. Tem mais de 25 anos de experiência profissional, atuando em projetos de Marca, identidade visual, embalagem, branding e inovação. Com formação complementar nas áreas de música, antropologia, filosofia e história da arte, é também autora e editora do site SobreTodasAsCoisas e sócia do MaturityNow. Valéria passa a contribuir quinzenalmente para o São Paulo São.

Referências

1
‘não existe amor em SP’:  Criolo, em “Não existe amor em SP”.
‘selva de pedra’: Vertical Jungle, em “Selva de pedra”.
‘túmulo do samba’: Vinícius de Moraes, em frase proferida durante uma apresentação de Johnny Alf na boate La Cave, em 1960.
‘aglomerada solidão’: Tom Zé, em “São, São Paulo”.
‘pardais, baratas, ratos’: Premeditando o Breque (Premê), em “São Paulo, São Paulo”.
‘o povo oprimido das filas’: Caetano Veloso, em Sampa.
‘véu de fumaça’: Billy Blanco, em “ O céu de São Paulo”.
‘cidade tão lírica e tão fria’: Vinícius de Moraes, no “Soneto sentimental à cidade de São Paulo”.

2
Morin, Edgar, “O método 6: Ética”, Ed. Sulina, 2004.

3
Montesquieu, “O gosto”, Ed. Iluminuras, 2005.

 

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