‘Sidewalk Play’, brincadeira na calçada

É sabido que nos dias de hoje há cada vez menos espaços para que as crianças possam usufruir, conhecer e desbravar as grandes cidades. Por conta dos problemas urbanos criados pelas grandes aglomerações populacionais como a segurança e o trânsito caótico de pessoas e automóveis, os pais e/ou responsáveis se sentem receosos em deixar seus filhos, crianças, ou mesmo adolescentes, circularem pelas ruas. Isto tem levado a que o grau de autonomia das crianças e dos adolescentes seja cada vez menor e a independência destes últimos ocorra cada vez mais tarde, condenados a um estado de minoridade penal perpétua . Isto por conta dos inúmeros medos, fobias e preconcepções, justificados ou não… da violência urbana, em todas as suas expressões, e das poucas e precárias opções de mobilidade e lazer públicas etc.

Crianças ocupam a rua em M'Boi Mirim, zona sul de São Paulo. Foto: SMC.Os espaços públicos, como parques, praças e campos abertos de terra batida, tão comuns nos tempos em que nossos pais e avôs chutavam bolas de meia, andavam de bicicleta e empinavam pipas por aí, se tornaram escassos. Os espaços urbanos foram sendo financiarizados e explorados ad nauseam na espiral de especulação imobiliária sem fim. Vivemos atrás dos muros de nossos condomínios, confundidos por nossos afetos na patológica relação entre o público e privado que se construiu no Brasil contemporâneo.

Na lógica do condomínio, testemunhamos um “cercamento” do público dando lugar ao privado com seus muros que representam a nossa incapacidade de lidar com as nossas diferenças sociais, políticas, econômicas e raciais. Assim, fechamo-nos, ensimesmados e “seguros” dos nossos medos e fobias nos espaços privados que o nosso dinheiro pode comprar… E excluímos e encarceramos o diferente ou aqueles de comportamento desviante. Os filhos bem-nascidos, como signo fossem do capital e, portanto, da “bem-aventurança” dos seus pais, empreendedores de si mesmos, são tratados como valiosos, especiais e saudáveis, ou frágeis, demais para circularem por aí pelas ruas ou para sequer serem educados ou vacinados junto com os demais membros da comunidade. Assim, as crianças e adolescentes são imbecilizadas, nas palavras de Christian Dunker,  no afã narcísico dos seus progenitores de protegê-las dos problemas, do mundo, da vida. Isoladas no arquipélago dos seus, não se veem por serem impedidas de saírem de si. E assim permanecem ilhas.  

 Na lógica do condomínio, testemunhamos um “cercamento” do público dando lugar ao privado. Foto: Getty Images.

Não é de se estranhar que neste contexto haja cada vez menos crianças ocupando as ruas. Cada vez menos espaços para o encontro, para o lúdico, para o público… Cada vez menos tempo para a conversa, para o brincar, para o “nada fazer” criativo. Nas cidades do interior e mesmo em alguns bairros centrais das grandes metrópoles, que preservam certo ar “vintage” de “vila”, e outros periféricos, que conseguem manter à duras penas a sua dignidade socioeconômica, ainda é possível ver crianças jogando bola, brincando nas calçadas, sendo criança, sem a escolta de seguranças e babás nem detrás de grades de proteção e guaritas. 

Diante deste cenário, as crianças estão mais reclusas nas suas casas, condomínios, escolas, shopping centers, os ditos “lugares seguros”. Em tempos de hiperconectividade, smartphones e vídeo games, a rua se torna mais distante, mais ameaçadora, mais inexpugnável e menos necessária, e as crianças acabam se entregando aos vícios narcísicos da sociedade do consumo, alvos do marketing e da propaganda, da mídia, da indústria de entretenimento. Do ter e não do ser ou do viver. Na tentativa de propor soluções para preencher o vazio e reduzir a distância existentes entre as crianças e a cidade, muitas instituições, grupos associativos e poder público (prefeituras) têm se organizado na tentativa de promover o resgate do espaço público em prol da interação, do lúdico, do brincar, do ser criança em meio ao caos da pólis e da aceleração da vida que parece contaminar a todos. Estes são movimentos que como arautos do bem viver tratam de amolecer os espíritos para que a vida não seja um sem fim de negar ao mundo o que é do mundo e de temer tragédias e desastres, quando o pior que poderia acontecer para o humano que habita em nós já se deu, permanecermos ilhas. 

Crianças do "Carona a Pé". Foto: Divulgação.Entre estes projetos que tratam de despertar a atenção de adultos e crianças para o público e valorizam a brincadeira buscando criar e oferecer alternativas para que as crianças possam viver os espaços públicos e brincar, vale citar o “Carona a Pé”. Organização de mobilidade e educação que deseja despertar adultos e crianças para a importância de andar a pé e construir uma nova relação com a cidade onde vivem. O Carona a Pé surge em 2015, inspirado em outros programas similares que acontecem ao redor do mundo. O objetivo é sensibilizar e capacitar a comunidade escolar que mora próxima para percorrerem juntos o trajeto de ida e/ou de volta da escola em pequenos grupos, em um horário pré-estabelecido, seguindo uma rota determinada (https://caronaape.com.br/).

Criançass da Rede Brincar em atividades lúdicas. Foto: Divulgação.

A IPA Brasil – Rede Brincar, representante no Brasil da International Play Association (http://ipaworld.org/), que tem como missão proteger, promover e preservar o brincar da criança como um direito fundamental. A IPA Internacional promove ações e intercâmbios entre disciplinas e setores e está presente em mais de 50 países. No Brasil desde 1997 (https://www.ipabrasil.org), atua para que as crianças e adolescentes brasileiras tenham oportunidades para o brincar livre e acesso à cultura e ao lazer, com base no Artigo 31 da Convenção dos Direitos da Criança – ONU.

O “Ruas de Brincar” (https://cultura.jundiai.sp.gov.br/programas/cidade-das-criancas/ruas-de-brincar/) é uma iniciativa da Prefeitura do Município de Jundiaí integrada ao programa “Cidades das Crianças”, criado quando a cidade foi a primeira no Estado de São Paulo a se integrar a Rede Latino Americana – Projeto Cidade das Crianças, a fim de incentivar junto às crianças e adultos o resgate às brincadeiras. De forma a zelar pela segurança, a Prefeitura disponibiliza cavaletes estilizados, com a frase “Perdoem o transtorno. Estamos brincando por vocês”, que indicam o espaço da “Rua de Brincar”.

Criança do Jardim Fepasa em Jundiaí, participa do Projeto Ruas de Brincas. Foto: Divulgação.Quem gerencia o fechamento das ruas são os próprios moradores do entorno.  Estas e outras  iniciativas similares são um sopro de esperança para uma sociedade que se encontra angustiada e cindida por um estado de permanente luta pela sobrevivência social e econômica que mina os seus instintos mais primitivos de cooperação. As crianças ao socializarem nas ruas no ato de brincar tem as suas primeiras lições do abecedário da cidadania. Quem sabe ocupando e resgatando os espaços públicos e revivendo as brincadeiras e o próprio brincar não estejamos construindo comunidades, cidades, países e um mundo mais humano e solidário. Que este dia 12 de outubro, seja uma celebração mais do que da criança, mas do brincar. 

***
Por Luiz Alfredo Santos e Patrícia Maria Martins do Sidewalk Talk – Conversas na Calçada, que escrevem quinzenalmente no São Paulo.

Referências

i.  DUNKER, Christian. 2017. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu Editora.
ii.  DUNKER, Christian Ingo Lenz. 2015. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicologia do Brasil entre muros. 1ª Edição. São Paulo: Boitempo, 2015 Estado de Sitio.
iii. Idem citação i.v. Referência ao livro “O conto da ilha desconhecida” de José Saramago.v. Idem citação i.

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