‘Situando Jane Jacobs’: livro revisita ideias da ativista que revolucionou o urbanismo mundial

“Morte e Vida das Grandes Cidades” não foi radical apenas pela influência que teve em especialistas e gestores, mas também pela postura cidadã da qual a autora se investia e se fazia exemplo. Foto: Getty Images.

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“A principal reflexão de Jane que continua válida é a ideia de que a cidade e suas ruas são organismos complexos, que não é possível planejar esses espaços sem levar em conta as dinâmicas e a sociabilidade que existe”, comenta o professor Renato Cymbalista, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Cymbalista é o organizador de Situando Jane Jacobs”, obra lançada pela Editora Annablume em 2018. O livro foi escrito por estudantes de graduação da FAU entre 2016 e 2017, fruto de uma disciplina da faculdade. “Por outro lado, Jane Jacobs não podia prever que as cidades, e em alguns casos a paisagem que defendia tanto, seriam tomadas pelo turismo e por processos de gentrificação”, acrescenta o professor, referindo-se ao processo de transformação dos centros urbanos provocado pela mudança dos grupos sociais que habitam neles.

Situando Jane Jacobs

 Jane Jacobs e manifestantes em protesto para salvar a Penn Station da demolição de 1963. Foto: Walter Daran / Hulton Archive / Getty Images
Jane Jacobs e manifestantes em protesto para salvar a Penn Station da demolição de 1963. Foto: Walter Daran / Hulton Archive / Getty Images

“No início do curso foi feito um mapeamento de interesses e desejos dos alunos em investigar aspectos da vida, da obra e dos impactos da atuação de Jane Jacobs”, comenta Cymbalista, sobre a produção do volume. “A partir desses interesses fomos fazendo propostas para os capítulos. Foram formados grupos que passaram para a redação dos textos e tivemos, nos dois anos, apoio de estudantes de pós-graduação como monitores.”

Imagem: Editora Annablume.

A trajetória de Jane é revisitada em capítulos que, na primeira parte do livro, se aprofundam em sua chegada a Nova York, o surgimento da intelectual pública e sua famosa disputa com o engenheiro norte-americano Robert Moses. Nos anos 60, a ativista foi uma das responsáveis por impedir o projeto de Moses de construção de uma via expressa elevada, uma versão nova-iorquina do Minhocão, que cortaria Manhattan e alteraria radicalmente o entorno.

O objetivo dos capítulos dessa parte é fazer justiça a Jane, revelando aspectos de sua atuação pública para além de seu livro mais famoso. Como jornalista, ela foi free-lancer da Vogue, contratada da Iron Age e da Architectural Forum e também escreveu como convidada para Fortune.

A recepção de Jane no Brasil e a presença de suas ideias no urbanismo paulistano compõem outra parte do volume, que agrega ainda entrevistas com especialistas. “As entrevistas buscam construir o percurso de chegada das ideias de Jane Jacobs ao Brasil, desde sua publicação em inglês até a contemporaneidade, em que menções a ela aparecem em todos os lugares”, explica Cymbalista.

O docente deixa claro, entretanto, que a obra de Jane não é uma “receita de bolo” para fazer qualquer cidade florescer independentemente de seu contexto, o que vale especialmente para o Brasil.

“Tudo aquilo que consideramos uma boa cidade atualmente – ruas vibrantes, fachadas ativas, bairros mistos, bairros mais densos – tem muito do que Jane Jacobs defendia na década de 1960. Por outro lado, as ideias de seu livro mais famoso não são um manual de construção de cidades”, analisa Cymbalista. “Existe uma mediação importante que é o Estado, seus investimentos, a regulação, que são essenciais para nos aproximarmos da cidade que desejamos e que não fazem parte das reflexões de Jane Jacobs. Nesse sentido, ela é uma autora bastante liberal: ela achava que a cidade se autorregula. Na nossa realidade isso não faz sentido. Acredito, aliás, que não faz sentido em nenhuma realidade.”

Postura cidadã

Imagem: Architect Magazine / Reprodução.
Imagem: Architect Magazine / Reprodução.

Jane caminhava pelas ruas de Greenwich Village, na baixa Manhattan, e notava que a vida do bairro estava justamente nas crianças brincando pelas calçadas, no açougueiro à porta do seu estabelecimento local, na mistura de residências e comércios. Atividades integradas e circulação de pessoas tornavam a cidade mais segura, assim como a diversidade de construções, novas e antigas, tímidas e encorpadas.

Foto: Fred W. McDarrah/Getty Images.
Foto: Fred W. McDarrah/Getty Images.

Em 1961, era uma visão esquisita. Engenheiros, arquitetos e urbanistas dos Estados Unidos recitavam a cartilha da segregação das atividades, com a saída das residências para os subúrbios e investimento pesado em grandes vias para automóveis particulares. Os centros urbanos antigos eram considerados degradados e a substituição de edifícios tradicionais por torres agigantadas era ordem do dia.

O livro de Jane foi uma espécie de cavalo de pau na reflexão urbanística. De seus capítulos surgiam cidades multifuncionais, compactas e densas, prioridade aos pedestres com valorização das calçadas, quadras pequenas e esquinas como pontos de sociabilidade. Era uma torção na escala de observação e planejamento urbano: olhar a cidade não de cima da maquete, mas com os olhos das pessoas. Em uma frase, era prestar atenção no que as pessoas fazem na cidade, em vez de prescrever o que as pessoas devem fazer.

“Morte e Vida das Grandes Cidades” não foi radical apenas pela influência que teve em especialistas e gestores, mas também pela postura cidadã da qual a autora se investia e se fazia exemplo. Era o citadino jogando suas cartas e intervindo no debate público sobre seu local de vida. Se a lógica dos megaempreendimentos e condomínios de subúrbio não foi enterrada pelo livro – São Paulo insiste em suas segregações -, ao menos a obra se tornou paradigmática para a reflexão sobre uma cidade mais humana e até hoje inspira especialistas, políticos e ativistas.

Serviço:

Livro: Situando Jane Jacobs, de Renato Cymbalista (organização), Annablume Editora, 320 páginas.

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Artigo publicado originalmente no Jornal da USP. Edição: São Paulo São.

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