Slam Resistência: a poesia e a voz de quem sempre sofreu calado

A poesia falada por aqueles que foram silenciados ganha os “palcos” das ruas e das praças. Esse é o objetivo dos slams. “A poesia tem ajudado muitas pessoas, aquelas que sofrem caladas. Ela as tira da violência do cotidiano. Percebemos isso a cada dia com pessoas que passam por lá”, afirma o educador Charles Monteiro de Jesus, um dos organizadores do Slam Resistência, programa de todas as primeiras segundas-feiras de cada mês na Praça Roosevelt, na região central de São Paulo.

Antes de o poeta iniciar sua fala todos gritam em coro: “Sabotagem, sem massagem na mensagem! Slam Resistência!” A partir daí, rimas e ritmos. “Quando você tem movimentos assim, você pega pessoas marginalizadas pela sociedade e pela mídia e fala: ‘O que você tem pra falar pra gente?’. Tem uma relevância histórica muito grande, porque nos livros você só encontra o que é contado pelo vencedor. O slam é uma oportunidade para quem está apanhando todo dia falar”, afirma a compositora Gabi Albuquerque.

O slam funciona como um campeonato em forma de sarau. Competidores apresentam seus versos em até três minutos e são avaliados por um júri composto por cinco pessoas da plateia escolhidas na hora. No Slam Resistência, todo mês tem um ganhador. No fim do ano, a última etapa então é realizada entre os vencedores dos outros meses para a definição de um vencedor geral. Este, então, participa do Campeonato Estadual de Poesia Falada SlamSP. De lá, os cinco melhores participam da edição nacional, o SlamBR. O campeão desta edição ganha uma vaga para o mundial, que acontece em junho na França.

Charles conta que o Slam Resistência surgiu em 2014, em um cenário de ebulição política no Brasil. “Começou em reuniões que aconteciam na Roosevelt, chamadas Quintas de Resistência. Essas reuniões aconteciam entre movimentos sociais e advogados ativistas. Esses grupos debatiam e falavam muito sobre violência policial contra manifestantes. Em 2013, aconteceram manifestações em diversos lugares do país”, disse em referência às chamadas jornadas de junho.

“Dentro dessas reuniões, entre uma e outra fala, tinha algumas intervenções poéticas. Uma dessas pessoas que fazia parte gostou das intervenções e sugeriu a criação do slam. A partir disso, em outubro, começou. O idealizador foi o poeta Del Chavez, que conversou comigo. Nós nos conhecíamos do Slam da Guilhermina e ele me chamou para organizar na Roosevelt. Eu achei ótimo, estava dentro”, diz Charles.

Del Chavez é da zona leste da capital, onde acontece há seis anos o Slam da Guilhermina, em uma praça anexa à estação Guilhermina Esperança, da linha 3 vermelha do metrô. “Sou Adelson Chavez, o Del Chavez, idealizador do Slam Resistência após o contato com os manifestos de 2013 e 2014. Fiz algumas intervenções nas reuniões dos movimentos sociais. Sou cria do Slam da Guilhermina, moro do lado. Gostaram das intervenções que fiz, aí, na hora, falei que ia fazer o slam na rua”, descreve.

Ditadura velada

Charles conta que antes do slam atuou como educador social. “Faço parte do Movimento Sem Universidade (MSU). Dou aulas de História nesse cursinho popular em regiões periféricas. Por vários anos estive nesse projeto, até 2016. No ano passado, infelizmente, ele não pôde acontecer, porque o atual governo tem um pensamento diferente”, lamenta, referindo-se à gestão do prefeito João Doria (PSDB), que assumiu em janeiro de 2017. “Como o cursinho é gratuito, direcionado para pessoas nas periferias, precisamos do espaço público para realizar. A atual gestão nos impediu de utilizar os CEUs nos finais de semana para o projeto.”

As dificuldades sempre existiram para o povo da periferia. Entretanto, o cenário vem endurecendo nos últimos anos e as dificuldades de Charles começaram com o fim do cursinho popular e culminaram na repressão ao slam. “Estamos na Roosevelt, uma praça muito grande. É a única que conheço que tem duas bases policiais. Em 2017, em todas as edições, todos os meses, tivemos visitas da Guarda Civil Metropolitana (GCM) querendo encerrar nossa atividade. É bem complicado, porque na atual gestão não existe diálogo. Eles chegam ameaçando, dizendo que vão levar para a delegacia.”

“Ano passado, nossa primeira edição foi em março e reunimos 700 pessoas. Quando foi 8h40 da noite, dois guardas chegaram para nos abordar dentro da lei da Perturbação da Ordem, uma lei muito usada no período da ditadura militar, e da lei do Psiu. Só que ainda não era 22h. Estávamos com a lei do artista de rua, que nos ampara, e mostramos para eles. É uma praça pública e temos o direito de estar ali. Então, eles ameaçaram chamar a tropa de choque. Continuamos o evento. Quando chegou perto das 22h, a GCM fez uma fila com 24 guardas de cara feia, três viaturas com giroflex ligado, ai ele falou que ia chamar a tropa de choque e disse que eles não viriam para conversar”, lembra.

As investidas foram além das ameaças de chamar o Choque. Os guardas, conta Charles, dizem frequentemente que vão apreender os instrumentos dos músicos, e chegam a intimidar diretamente participantes do Slam. “Em um dia, uma poeta veio lançar um livro. Ela foi abordada pela PM por causa de uma poesia dela que denuncia a truculência. O policial intimidou ela, disse que ‘estava de olho’ nela, para ela tomar cuidado. Essa é uma situação muito delicada. Daqui a pouco não vamos poder mais abrir a boca. Como diria o Chico Buarque, estaremos ‘falando de lado e olhando para o chão'”, disse o educador, fã de música brasileira.

Para Charles, os cenários do slam e do país mudaram muito desde em 2014. “O momento é muito delicado. Desde o golpe de 2016 só temos visto retrocessos. Cortes de verbas, redução nos repasses em educação, saúde cultura. Isso tem um impacto muito negativo. As poucas coisas que temos não estão funcionando como deveriam. E quem mais sofre são as pessoas das periferias. O centro, por mais que se reduzam os repasses para a cultura, sempre tem algo acontecendo. Nas periferias não.”

“Está bem difícil. Estamos nesse monitoramento para evitar choque. Nessa gestão, estamos vendo mais violência. Antes até dava para conversar. Ano passado, ouvimos de um dos comandantes da GCM, de que quando fazemos nossas atividades, eles não têm registros de roubo, furto. Nem eles têm esse problema, mas mesmo assim sofremos várias abordagens e todas violentas, ao menos nas palavras (…) Mudou bastante. Na gestão passada, eles vinham, nós conversávamos e eles nos davam mais 20 minutos para acabar e perguntavam: ‘Está tranquilo?’. Agora não tem esse diálogo mais. ‘Esses instrumentos são de vocês? Se tocarem vamos confiscar’. Está nesse nível. Parecendo ditadura não declarada.”

O Slam Resistência está em contato contínuo com outros slams do Brasil. Muitos poetas vão a São Paulo apresentar suas obras, e participantes paulistas viajam para outros estados para participar de competições locais. “Ano passado, um membro da equipe foi para o Rio de Janeiro e fez umas três sessões de slam. Ele foi na UERJ, que passa por uma situação bem delicada. Diante de várias coisas ruins, as universidades estão passando por muitas dificuldades. E foi muito bom o slam que foi feito lá. Nossa intenção é de voltar para o Rio de Janeiro esse ano, se possível com a equipe inteira”, afirmou Charles.

No slam de março deste ano, realizado no dia 5, dois cariocas e um cearense se apresentaram. Para Charles, o Rio de Janeiro é um lugar especial que demanda atenção da sociedade e do slam. “Essa intervenção no Rio é assustadora. Vi uma pesquisa feita após a intervenção e, em vários estados, tem pessoas que querem isso em seus estados. É bem preocupante, porque muita gente não sabe o que é uma ditadura. Meu foi preso durante a ditadura em Campinas, apanhou pra caramba. Então, as pessoas não têm noção do que estão pedindo.”

“Estamos preocupados, porque parece que parte da população está anestesiada. Está em silêncio. Tem uma música do Chico que ele diz que ‘esse silêncio todo me atordoa’. Me incomoda muito porque parece que está tudo bem, mas não está. Aumentou a fome, aumentou o número de pessoas em situação de rua, a miséria. Nos bairros mais afastados também tem esse reflexo”, observa.

Slam e representatividade

Os poetas que se apresentam no slam são os mais variados. Em comum, a falta de lugar de fala na sociedade. “A maioria deles vem da periferia. Como estamos no centro, fica fácil para convergir. Tem muita gente da zona leste, que são os que mais ganham os slams, mas tem das outras regiões e mesmo de outras cidades, Guarulhos, Poá, Osasco e até do litoral”, explica. “Se as pessoas estão vindo de vários lugares é porque de alguma forma o que é dito ali é importante. Tem professores que levam seus alunos, tem gente fazendo TCC, mestrado e doutorado. Isso mostra que algo de positivo está sendo dito.”

Os temas das poesias também seguem a mesma lógica. “Ultimamente os temas políticos estão bem fortes. Coisas do cotidiano. Tem muita coisa sobre feminismo, racismo, machismo. Estes são temas recorrentes”, diz Charles. 

O slam tem importância de formas variadas para cada participante. Lá, eles se apresentam para um público também variado, como Otani Júnior, representante de vendas de equipamentos cirúrgicos. Os cabelos brancos expõem a idade mais avançada. “O slam é fundamental para você socializar esse movimento que vem da periferia e fica escondido da mídia e dos canais de comunicação. É importante para divulgar o que passa na realidade do pessoal que vem da periferia”, disse.

Charles conta que as idades variam, mas que é mais constante o público adolescente. “Tem bastante adolescentes e gente mais de idade. Tem quem leve seus filhos. Temos uma diversidade grande de idade. Talvez por conta das pessoas serem ouvidas. Muitos vão ali não pare serem filmados, atrás de curtidas no Facebook, mas o texto em geral é como lavar a alma de uma violência ou de um momento difícil. Algumas saem aliviadas.”

Processo coletivo

O educador e organizador do slam deu exemplos que o deixaram emocionado. A reportagem selecionou dois deles que mostram como um processo coletivo de estímulo à representatividade e ao acesso ao lugar de fala impactam positivamente em indivíduos:

“No ano passado, em março, uma moça se inscreveu para participar da batalha e temos uma regra que se você começou a poesia e se errar, zeramos o cronômetro e volta desde que seja a mesma poesia. Essa moça chegou em um certo trecho da poesia e ela travou. Zeramos o cronômetro e ela iniciou novamente. Ela travou novamente e a galera começou a aplaudir pra ela continuar e ela disse que não ia conseguir terminar a poesia. Então ela disse que ela veio de Campinas depois de sofrer uma depressão durante quatro anos sem sair de casa. E através de uma vídeo poesia ela começou a escrever e por isso ela estava ali.

Foi incrível, você olhava no público presente e a quantidade de pessoas com lágrimas nos olhos era surpreendente. Coisas que não têm preço que pague. A poesia tem ajudado muitas pessoas, algumas que sofrem caladas. A poesia tira da violência, percebemos isso com muitas pessoas que passam por lá”.

“Outro exemplo legal em outubro. Fizemos um slam no Largo da Batata. O pessoal se inscreveu e chegou a vez da moça. E ela disse que era a primeira vez que ela falaria em público. A mão dela tremia tanto… Quando ela terminou sua poesia, que falava de um problema pessoal, quem chega lá? A mãe dela. Elas se abraçaram, choraram, foi um momento muito emocionante e gratificante. Momentos que marcam”.

***
Por Gabriel Valery, da RBA.

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